(apontamentos sobre “Memórias de um lápis de lousa)
“Memórias de um lápis de lousa” é um livro da autoria do meu conterrâneo Fernando Pinheiro que, entre outras coisas, foi diretor do jornal “Terras do Ave” onde também escrevi durante 15 anos. No livro, quase esgotado, mas que espero possa ter alguma reedição, Fernando Pinheiro relata-nos deliciosas e divertidas memórias da sua infância passada na nossa freguesia de S. Salvador de Árvore, situada 3 km a sul da sede do concelho, Vila do Conde.
Não posso, naturalmente, desvendar as várias histórias desse livro, para que os que o venham a ler tenham ainda o mesmo prazer que eu tive de viajar no tempo pelas vielas, campos e bouças até à infância do autor, nascido aqui em Árvore em 1943, mas quero abordar dois pontos que me chamaram a atenção.
A lavoura e os lavradores
Na página 70 do seu livro de memórias, a propósito de uma história caricata que envolveu um agricultor, Fernando Pinheiro explica aos leitores que «“lavrador” e “casa de lavoura” eram os termos usuais para designar quem possuía terras e nelas trabalhava» e que essas expressões, entretanto «consideradas pejorativas, foram substituídas por “agricultor” e “exploração agrícola”». O autor conclui: “Estranhamente entendida por alguns como uma promoção social, não o é de facto, mas também não será por aí que virá mal ao mundo.”
De facto, eu acompanhei com esperança, essa mudança de nomes. “Lavrador”, para mim e para muitos, significava velho, rude, sujo, agricultor era remediado / classe média e “chique” era ser “empresário agrícola”, que talvez seja o nome mais correto. Este “upgrade” de nomes lembra-me que também os varredores passaram a “técnicos de limpeza pública”, as empregadas das escolas a “assistentes operacionais” e por aí adiante (tudo profissões que me merecem o máximo respeito).
Curiosamente, há poucos meses, numa conferência online em que me apresentaram como titular de uma “exploração agrícola”, chamei a atenção para carga negativa da palavra “exploração”. Este nome deve ter tido origem na junção da agricultura com as pescas e a “exploração mineira” no “setor primário”, mas há uma diferença entre quem faz um buraco para extrair ouro, pedra ou petróleo, onde há efetivamente uma “exploração”, e aquilo que fazemos quando criamos animais ou cultivamos a terra. Como disse na altura, posso comprovar com análises da terra que, em geral, os campos que cultivo têm agora teores de matéria orgânica ou de nutrientes superiores a quando comecei a trabalhá-los. Muitos terrenos são limpos e drenados pelos agricultores. Portanto, não estamos a “explorar” a terra, estamos a cultivar, criar e cuidar o melhor possível, tal como fizeram os nossos antepassados desde que se inventou a agricultura. Por isso, como disse também na ocasião, sempre que possível deixo de lado a palavra “exploração”, apesar de ser o termo técnico correto e prefiro a “lavoura”, palavra que os nossos colegas açorianos nunca deixaram de usar e que significa labor, trabalho.
Uma das histórias mais divertidas do livro é o relato da “ida aos grilos” dos miúdos da escola. Experiência que eu também fiz algumas décadas mais tarde, procurar a toca dos grilos pelo som do “cri-cri”, meter uma palhinha e em último recurso fazer xixi para o grilo sair da toca, apanhar e levar o grilo para a casinha de plástico comer folhas de alface e cantar durante o verão. O capítulo termina num tom de saudade, porque o dono do campo já partiu para a vida eterna, porque o tanque da rega do campo, onde as mulheres lavavam as mantas está agora submerso num denso silvado, as latadas (ramadas) desapareceram e “até os grilos, dizimados pelos pesticidas, rareiam agora nos prados”. Aposto que é uma boa descrição do que sente muita gente em relação a muitos locais do nosso meio rural. Mas este local eu conheço. Nunca entrei nesse campo, mas passo ao lado dele muitas vezes porque cultivo outros campos próximos. Curiosamente, trabalhava num desses campos enquanto ouvia na rádio um dos filhos de Fernando Pinheiro moderar um debate na rádio TSF sobre a agricultura e as alterações climáticas.
É verdade que os grilos quase desapareceram dos campos arvorenses e, apesar de já ter feito alguns contactos, não consegui ainda uma explicação fundamentada sobre as causas: pesticidas, lavouras anuais que destroem as tocas, outra coisa? Uma coisa é certa, continua a haver muita vida no solo. Num dos campos que cultivo, ao colher amostras de terra, o Luís exclamou: olha, pai, uma minhoca. Nesse e noutros campos mostrei-lhe os montes das toupeiras, que cavam a terra procurando minhocas e insetos. Toupeiras são sinal de vida. Antigamente caçavam-se as toupeiras, era mais passatempo dos idosos que das crianças, felizmente essa prática também caiu em desuso, porque as toupeiras são animais úteis. Ajudam a controlar alguns insetos do solo, autênticas pragas que podem destruir as culturas. Por causa de outros insetos para os quais as toupeiras não bastam, usamos inseticidas todos os anos. Portanto, apesar de tudo, ainda há muita vida no solo. E, entretanto, alguns inseticidas foram proibidos e os cientistas vão procurando novos produtos menos tóxicos. O caminho é para a frente.
É verdade que o tanque está abandonado, mas por um bom motivo: todas as pessoas agora têm água canalizada e máquina de lavar, dentro das suas casas. É verdade que as ramadas aqui nesta terra foram quase todas cortadas, porque esta terra, muito próxima do mar, tem poucas condições para produzir vinho de qualidade, mas não falta bom vinho português, de melhor qualidade que antigamente. E o dito terreno, todo o terreno, continua a ser regado, agora com motor direto do poço. Continua cultivado pelos descendentes. E se um dia esta ou outra família não puder cultivar, outros agricultores, perdão, lavradores, estarão disponíveis para arrendar. Não há campos abandonados em Árvore, a menos que seja opção do proprietário.
“Antigamente” as coisas não eram todas melhores. Evoluiu-se imenso, deixou-se para trás muita pobreza, outra ainda persiste e alguns caminhos não terão sido os melhores. Mas quando nós dizemos que antigamente é que era bom, significa sobretudo que temos saudade de ser mais novos. E isso também é bom, significa que fomos felizes ou, pelo menos, que o tempo nos ajudou a esquecer o mau e lembrar o bom. Queria só deixar esta nota como sinal de esperança. Como escrevi noutro lado, “faz-nos falta esta perspetiva de sermos elos da cadeia da vida. Não somos o centro do mundo, nem o princípio nem o fim da história. Beneficiamos do que os nossos pais e avós plantaram. Semeamos agora o que os nossos filhos e netos irão colher. A vida já existia antes de nós e continuará depois. Somos passageiros temporários deste comboio. Espero que este texto vos dê serenidade para desfrutar da viagem…”
(publicado na edição Maio / Junho da revista mundo rural)