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Versos da minha mãe

por Carlos Neves, em 08.02.23

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Antiga jacista e responsável do “mundo rural”, a minha mãe nasceu em 1935 e faleceu em outubro de 2022. Em jeito de homenagem, partilho convosco os versos que ela escreveu para se rir com as visitas na convalescença de uma perna partida durante o trabalho agrícola em abril de 1995 que levou à colocação de prótese no fémur. (publicado na Revista Mundo Rural de janeiro - fevereiro de 2023)

 

Foi na nossa vacaria

Que dei um trambolhão,

Caí, tive muitas dores,

Mas era a semana da paixão

 

Foi no dia 4 de Abril,

Ai que grande aflição!

Caí, parti uma perna

Fui logo p'rá operação!

 

Dei um passo em falso,

Voei como o papel.

Comecei logo a gritar:

"And' aqui ó Manuel!"

 

Levou-me nos braços,

disse "que tens na perna?"

a almofada que me deu

foi um monte de erva.

 

O Manuel ficou aflito

porque eu tinha muitas dores;

mas eu tudo ofereci

pela conversão dos pecadores.

 

Como não era pesada,

mas tinha coisa quebrada,

chamou o Carlos Manuel;

eu já estava desmaiada.

 

O David e a Fernanda

vieram logo a correr,

para me ouvir gritar;

e ficaram sem comer...

 

Perguntaram "O que foi?"

Pois eu estava mal.

"O melhor e o mais rápido

é levá-la para o hospital".

 

Ao chegar à Clipóvoa

fiquei admirada:

O letreiro diz "Urgência",

mas de urgência não tem nada!...

 

Logo rezei ao Senhor:

"Oh! Pobres dos doentes!

Os especialistas foram embora,

e não tinham suplentes".

 

Passado um certo tempo

O radiologista teve esta saída:

"Olhe, minha senhora,

está partida e bem partida!"

 

Já era muito tarde

Quando o meu marido diz:

"Tem que ficar internada?"

-Tem, e esperar pelo Dr. Dinis!"

 

O Dr Dinis chegou e disse:

-"Tem que ser operada"

-"Mas eu tenho tantas dores!"

- Vai p'ró 310 e fica curada!

 

De enfermeiras e empregadas

eu não tenho que dizer;

Olharam-me para me ajudarem

e deram-me de comer!

 

Visitas, foram muitas,

apontei-as até ao fim;

Porque eu não me quero esquecer

de quem não se esqueceu de mim!

 

Tive oferta de flores

e uma visita fresquinha;

Foi o meu afilhado Álvaro

que levou a minha madrinha!

 

Quando a vi entrar

fiquei muito admirada:

Com noventa e três anos

veio visitar a afilhada!

 

Que tenha paciência, 

toda a gente me diz:

Até o meu médico,

Que é o Dr. Dinis.

 

Que tenho bom aspeto

isso são lindas tretas;

Agora eu só posso

andar de muletas!

 

Até o Dr. Ferreira, homem sem tempo,

(todos veem, ninguém é cego);

Pedi-lhe um conselho, e ele disse:

"- Não meto estopa nem prego!"

 

Sexta-Feira Santa,

foi o dia de partida:

"é preciso ter coragem

que esta parte está vencida".

 

Todos rezaram por mim,

causaram-me grande alegria!

mas a penitência maior

foi a carta da secretaria...

 

Essa foi para o marido,

que é um homem sensato;

Perguntei: "- Quanto foi?"

"- Se ficares boa, foi barato!"

 

Dor de corpo e da carteira,

foram dois grandes degredos;

Mas lá dizia o ditado:

"Vão-se os anéis, ficam os dedos".

 

Que aprenda a andar,

eu vou obedecer;

Mas tenho tanto medo

de tudo desfazer...

 

No regresso à cozinha,

parecia um melro a dar à asa;

Telefonei aos irmãos e amigos:

"-Atenção: Já estou em casa!"

 

O Carlos e a Celeste

foram uns amores:

Regaram-me o Jardim

E eu já olhei para as flores.

 

A Celeste é mulher boa

que não gosta de discórdia;

Deu de comer a todos,

 fez obra de misericórdia.

 

A Aldina visitou-me

com ternura e carinho;

Também veio arrancar

a margem do cebolinho.

 

Da Cachada veio o Álvaro

para comigo falar;

Ainda trouxe as filhas

que ajudaram a trabalhar.

 

Do Porto veio a Aurora

que tem coração de veludo;

Veio trazer os folares

e eu falei-lhe de tudo.

 

Dia de Páscoa alegre:

Jesus ressuscitou! Aleluia!

Veio o Armando com a Nini

para me fazer companhia.

 

De Rio Mau também veio

A Nelita, que é enfermeira;

Disse que eu estava segura:

"- Saia, deixe a cadeira!"

 

Querer andar e não poder

Deu-me muito que pensar

Mas agora, com perna de ferro,

isto é que vai ser andar!...

 

Veio o Armando do Penas

Que é um moço com gana;

Conseguiu trazer aqui

a minha irmã Ana!

 

A menina Anabela, 

Que é minha vizinha

foi a minha companheira

para eu não estar sozinha.

 

Com as galinhas a pôr ovos

e os coelhos a crescer;

O Carlos Manuel perguntou:

"Quem os ovos vai vender?"

 

Chama cá a prima Lurdes

Que tem habilidade e canseira;

Ela ajuda , vende os ovos,

e traz dinheiro p'rá carteira!...

 

Agora na vacaria

Eu não meto a colher;

É pra eles darem valor

ao trabalho da mulher...

 

O Carlos Manuel dá aos vitelos,

faz tudo muito bem;

O Manuel tira o leite

E não ralha com ninguém.

 

"Jesus, Maria Santíssima"

E os santos a ajudar;

Os amigos a pedir

para eu poder andar.

 

Às vezes, ai, quantas vezes,

adormecer bem queria;

mas quem faz versos não dorme,

não tem essa regalia.

 

há um ditado que diz:

"Virtude é saber ouvir"

Peço desculpa a todos

Escrevi isto só p'ra rir!...

 

Sem Jesus não somos nada, 

disto eu estou ciente;

espero ficar boa;

Deus é Omnipotente.

 

Adélia Dias Figueiredo (1935-2022)

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publicado às 19:50



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