Alguns dias após o início da guerra na Ucrânia, surgiu nas redes sociais um apelo “senhores agricultores alentejanos, está na hora de começar a semear trigo, cevada, aveia se noutros tempos o Alentejo esta o celeiro de Portugal, porque não o será agora?”
Não sou alentejano, estou 300 km a Norte do Alentejo mas posso explicar umas coisas:
- Não “está na hora” de semear trigo ou cevada. Trigo e cevada são cereais de inverno, que se semeiam no fim do outono para aproveitar as chuvas do inverno e primavera, para colher no Verão. Agora não há condições para essas culturas.
- O que se pode semear na primavera, se houver água no solo, chuva prevista ou rega disponível, são cereais como o milho ou oleaginosas como a soja ou girassol.
- Tenho a impressão que o Alentejo ser “celeiro de Portugal” foi mais um desejo do que realidade, que teve o seu expoente na “campanha do trigo”. Essa campanha foi uma iniciativa do Estado Novo, “criada no Diário do Governo a 21 de Agosto de 1929, tendo como objetivos: “Diretamente: Promover o aumento da produção de trigo até às necessidades do consumo, evitando assim a saída para o estrangeiro de importantes caudais de ouro; Indiretamente: Dignificar a indústria agrícola como a mais nobre e a mais importante de todas as indústrias e como primeiro fator de prosperidade económica da Nação”. A Campanha do Trigo integrou as seguintes iniciativas de apoio técnico e tecnológico: empréstimo de material agrícola às explorações; Estabelecimento de campos experimentais; Promoção da escolha e separação de sementes; Instalação de celeiros centrais; Instrução para a utilização de adubos; Assistência técnica direta às explorações. Foram ainda definidos apoios financeiros, tais como o subsídio de arroteia e o crédito de campanha. O crescimento da produção esteve na origem de uma grave crise do setor agrícola. Devido à superabundância das colheitas de 1931 e 1936, o preço do trigo sofreu uma forte desvalorização. Em consequência, os mecanismos mais típicos da Campanha do Trigo foram posteriormente eliminados. A produção do trigo foi apoiada até 1960”. (retirado da Wikipédia). Acusam esta campanha de ter provocado a erosão de solos que não eram aptos para a produção de trigo.
- “Portugal tem um grau de autoaprovisionamento (autossuficiência alimentar do país) de cerca de 85%”, indicou a atual Ministra da agricultura numa audição na comissão parlamentar de Agricultura e Mar em julho de 2020. De acordo com os dados avançados pela governante, o grau de autoaprovisionamento dos cereais está nos 18%, da carne em 75%, dos frutos nos 77%, do vinho em 113%, do azeite nos 160%, dos hortícolas nos 155%, do tomate em 175%, da batata em quase 49%, do leite em 106%, do queijo em 65% e da manteiga em 152%.”
- Muito do azeite referido acima é produzido no Alentejo, provavelmente em terrenos por onde passou a campanha do Trigo. Porquê? Porque o azeite é mais bem pago do que o trigo, que até agora vinha barato do exterior, de países como a França, a Ucrânia e a Rússia. Os agricultores precisam de faturar para pagar as despesas da empresa agrícola, os salários e as suas despesas pessoais. Se a atividade não for rentável mudam para outra dentro da agricultura ou saem da agricultura.
- Olhando as montanhas rochosas do Norte e Centro de Portugal, o meu pai dizia muitas vezes: “Portugal não é um país agrícola, é um país pedrícola”! De facto, a nossa “superfície agrícola útil” representa apenas 40% da área total do país. Temos muita montanha, muita pedra, muita terra difícil ou pouco produtiva. Terrenos férteis, mas de pequena área a norte, terrenos de pequena dimensão no centro, Terrenos grandes no sul mas com pouca água disponível, salvo exceções como o Alqueva. Temos muitas aldeias e campos abandonados por quem partiu para as cidades ou para o estrangeiro à procura de uma vida melhor do que a pobre subsistência que a agricultura lhes permitia.
- Temos capacidade de produzir mais alimentos do que hoje? Certamente. Para isso é preciso que a agricultura e a soberania alimental sejam prioridades para o governo e para a sociedade. Que os agricultores em Portugal recebam as mesmas ajudas e recebam o mesmo preço pelos produtos que os colegas europeus; que as grandes superfícies parem de usar alguns produtos agrícolas (caso do leite) como isco para atrair clientes, pagando aos fornecedores um valor abaixo dos custos de produção e colocando enormes margens noutros produtos (caso das frutas e hortícolas).
Não podemos plantar milho nos socalcos do Douro. Não vale a pena arrancar os olivais acabados de plantar no Alentejo, para semear trigo. Mas podemos vender o vinho e o azeite “trocando” pelo trigo e milho que nos faltam. Podemos colocar mais cabras a pastar as montanhas, se estivermos dispostos a pagar pelos cabritos um valor que pague ao pastor o sacrifício do seu trabalho. E podemos pagar mais aos produtores de leite, aos horticultores e a outros que investiram, tem capacidade de produzir, mas estrão desanimados e a pensar fechar a atividade porque se sentem abandonados. Portugal não é um “país agrícola” na maior parte da área, não tem 70% de área agrícola como a Ucrânia, mas é neste momento um “cantinho do céu” onde há paz. Tem muito monte, muito bravio, mas apesar disso ainda tem muito boa terra que poderá ser cultivada se quem governa o pais e os supermercados realmente quiser.
Carlos Neves
Escrito para o mundo rural de maio - junho de 2022