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Memórias de uma aventura no Pingo Doce

por Carlos Neves, em 22.11.20

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A polémica que nasceu e desapareceu há dias com a hora de abertura do Pingo Doce (ups, já tinham esquecido, não?) fez-me recordar uma aventura que vivi nas lutas do leite, a 22 de Março de 2016, e cuja leitura vos pode ajudar a passar estes dias de recolhimento…

Antes de mais, puxo atrás o filme para fazer o enquadramento: a 1 de Abril de 2015, acabaram as quotas que limitavam a produção de leite na Europa. Isso levou ao aumento de produção, à importação de leite barato pelos hipermercados, à baixa de preço do leite ao produtor, à redução de compras de leite português por parte de Espanha e à redução dos contratos que muitos produtores portugueses  tinham com as cooperativas. Perante o desespero, as  opções eram: 1) fazer barulho à porta das fábricas ou cooperativas e ficar num eterna discussão entre produtores e dirigentes; 2) arranjar problemas com a policia atacando e estragando camiões de leite importado, como faziam então os colegas espanhóis; 3) de forma pacífica mas persistente, apontar a solução mais lógica, que seria os hipermercados darem preferência ao leite português e fazer isto sem voltar a sociedade contra os produtores e  sem problemas com polícia ou tribunais para os colegas que aceitavam participar nas nossa ações, porque somos gente de trabalho que tem família e animais que dependem da nossa presença (um dia conto a minha experiência de arguido nestas cenas).

Assim, numa estratégia de comunicação e pressão contínua da APROLEP, a 17 de fevereiro de 2016, fizemos a primeira ação de “marketing direto” à porta de um Pingo Doce na Avenida da Boavista, no Porto, mostrando os produtos lácteos importados que se vendiam lá dentro e que previamente havíamos comprado; a 23 de fevereiro, domingo à tarde, repetimos a ação no Continente de Barcelos; A 6 de Março, os colegas do Sul fizeram uma ação de Marketing Direto à porta do Centro Comercial Vasco da Gama em Lisboa; E a 14 de Março, numa enorme manifestação organizada em conjunto por APROLEP, CNA e FENALAC, colocámos 200 tratores e um milhar de pessoas na Circunvalação do Porto, com paragens na DRAPN (Governo), no Pingo Doce  e no Continente de Matosinhos. Entretanto, o Continente deu resposta positiva, mas o Pingo Doce queria esperar pela sua nova fábrica para aumentar as suas compras de leite nacional. Que mais podíamos fazer?

No maior secretismo possível, a 22 de março organizámos um “raide surpresa” à loja do pingo doce na Póvoa de Varzim. Um grupo de 15/20 produtores entrou na loja, cada um com um carrinho de compras (um deles levava uma câmara “go pro”), outros com telemóvel a filmar, alguns com fita cola e cartazes bem visíveis para afixar no leite e produtos lácteos importados, tendo o cuidado de nada danificar. Os cartazes foram facilmente retirados  pelos funcionários, mas já depois de fotografados pelos nossos telemóveis e por alguns jornalistas que nos acompanharam; Além disso, para dar o exemplo ao Governo e Comissão Europeia sobre o que fazer com o leite excedentário, comprámos cerca de 1000 litros de leite nacional que entregámos depois no banco alimentar contra a fome. Entretanto, a gerência da loja chamou a polícia que identificou 2 voluntários do nosso grupo, mas não houve consequências.

Sabiam desta história? É provável que não, porque quase não foi notícia. Por azar, à mesma hora em que terminámos a ordenha da manhã antes de iniciar esta “invasão”, terroristas rebentaram uma bomba no aeroporto de Bruxelas. Ainda pensámos abortar a iniciativa, mas as primeiras notícias falavam de um pequeno rebentamento. Não foi pequeno, o atentado foi grave, foi a notícia do dia, ocupou todos os noticiários da TV durante dias, não houve tempo para nós e só no dia seguinte um dos canais passou a reportagem da nossa ação. Mas, apesar disso, pouco tempo depois o Pingo Doce chegou a acordo com uma indústria nacional para embalar leite português até à abertura da sua nova fábrica que permitiu aumentar as suas compras nacionais. Hoje, os preços aos produtores ainda continuam demasiado baixos, ainda há muita gente aflita com os limites de produção dos contratos, mas, curiosamente, alguns dos colegas nesta aventura já vendem leite diretamente para o Pingo Doce e, pelo que vejo, todos os hipermercados vendem leite nacional nas suas marcas próprias e declaram-no com orgulho.#carlosnevesagricultor

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