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O título deste texto é também o título de um livro que recebi de presente de uma pessoa amiga que conheci nestas andanças da ACR. Trata-se da autobiografia ou, como referem na capa, do “itinerário humano e espiritual de um casal de camponeses” franceses, Simone e Roger Leliévre, que foram dirigentes dos movimentos de jovens e adultos da Acção Católica Rural (ACR) em França e da Fimarc.
Achei o título tocante. É uma síntese brutal das suas e das nossas vidas. Nós, crentes, acreditamos que somos ao mesmo tempo filhos do céu, mas também filhos adotivos da terra enquanto estamos cá de passagem. Mas, além disso, nós, rurais, mais ou menos envolvidos no trabalho da terra, filhos ou netos de agricultores, somos “filhos” da agricultura, do meio rural e de toda a cultura ligada à terra. Nesta consciência de “filhos” há também uma humildade e uma simplicidade desarmantes que atravessam todo o livro.
Roger é natural da Normandia, no norte litoral da França. Simone nasceu a 600 km para o interior, próximo da Alemanha. As famílias de ambos dedicavam-se à agricultura desde tempos imemoriais. A sua infância foi marcada pela agricultura de subsistência e pela invasão alemã da segunda guerra mundial. Na juventude aderiram à JAC / JACF (juventude agrária católica masculina e feminina) e conheceram-se em Paris quando ambos estiveram como dirigentes leigos do movimento com responsabilidades de coordenação a nível nacional. Estiveram no congresso internacional de jovens rurais realizado em Lurdes em1960, onde o meu pai e outros jovens rurais portugueses também participaram.
Depois de casarem, decidiram instalar-se na agricultura, na década de 60, seguindo a profissão que tinham aprendido com as suas famílias. Devido à pequena dimensão da agricultura das famílias de origem, foram emigrantes no seu próprio país à procura da sua “terra prometida”, recorrendo a um serviço público que servia para “encontrar terra para gente que não a tem e gente para terra que não tem gente”.
Seguindo um conselho muito útil, os primeiros meses foram passados em estágios. Isto é muito importante mesmo para quem cresceu na agricultura, aprender formas de trabalhar de uma forma diferente da nossa família. Penso que mais estágios aumentariam o sucesso da instalação de jovens agricultores também no nosso Portugal do século XXI.
Encontrada uma quinta disponível, o início da atividade agrícola de Roger e Simone decorreu numa sociedade com outro casal de jovens agricultores, cultivando campos e criando vacas leiteiras nos terrenos e estábulos das duas famílias. A sociedade surgiu como opção devido a terem poucos recursos económicos e na expetativa de poderem ter tempo livre pela repartição do trabalho, mas ao fim de poucos anos romperam a sociedade por dificuldades de relacionamento cujos pormenores são omitidos no livro. Voltaram à “estaca zero” e durante alguns anos criaram vacas até que um surto de tuberculose no rebanho os levou a deixar a produção de leite (o que lhes permitiu libertar-se da “prisão das vacas leiteiras” que os impedia de visitar a família distante) e passaram à engorda de vacas limousine para carne e outras atividades como engorda de perús para o Natal e depois gansos. Simone especializou-se na criação de coelhos, de modo que foi até convidada a dar uma palestra, sendo apresentada como a “Senhora Lebre (Lelievre) que nos vai falar da sua criação de coelhos”. A audiência desatou a rir.
Tendo começado a receber turistas em regime de “turismo rural” familiar, essa foi também, durante anos, a sua oportunidade de fazer férias e visitar as suas famílias de origem, deixando a tomar conta da quinta e dos animais uma família que vinha lá passar férias;
Mais tarde, organizaram campos de férias pedagógicos para crianças. Durante anos foi um sucesso na aproximação das crianças ao mundo agrícola e onde se envolveram os quatro filhos do casal, já crescidos, mas, ao longo do tempo, o aumento das exigências em termos de regras e regulamentos tornou-se desencorajante. Ainda assim foi uma atividade que deixou excelentes recordações, como a menina que na hora de partir perguntou se não tinham para venda, como recordação, um perfume com os “cheiros da quinta” que ela adorava.
Há um capítulo do livro dedicado à disputa de terras entre agricultores vizinhos. O que aconteceu na França e continua a acontecer em todos os países desenvolvidos ou em desenvolvimento é a redução do número de pessoas que se dedica à agricultura e do número de quintas / empresas agrícolas. Os vizinhos que pretendem continuar na agricultura procuram alugar ou adquirir essas terras para ganharem dimensão. Roger foi chamado a mediar um conflito entre vizinhos que após ofensas estava a caminho do tribunal. Por cá não conheci casos tão extremos, mas o fenómeno é idêntico. É assim em todo o mundo agrícola. A opção é crescer ou fechar. Outro fenómeno associado é o endividamento dos agricultores. A substituição da mão de obra tradicional por máquinas cada vez maiores, mais complexas e mais caras, exige um investimento que afoga em dívidas muitos agricultores, num mercado em que não controlam os preços de compra e de venda dos produtos. Lá como cá.
O livro relata ainda a experiência da participação de Simone na gestão autárquica, o envolvimento de ambos no associativismo agrícola, o acidente de trator que capotou sobre Roger e a que sobreviveu “por milagre”, o auxílio a emigrantes, a sua consciência ecológica e o “porquê” das suas opções guiadas por uma “bussola” , um humanismo enquadrado na sua fé cristã. Tudo isso é inseparável da participação no movimento CMR (Cristãos em Meio Rural), a cujo secretariado nacional foram chamados já com os filhos nascidos, passando alguns anos em Paris e mais tarde dedicando dois mandatos à coordenação do movimento internacional da Ação Católica, a Fimarc. Entre as várias atividades há uma referência a um buffet gigante com 800 participantes e toda a diversidade de produtos oriundos de todo o pais. E essa referência levou-me à memória de um jantar memorável, à nossa dimensão, na Casa diocesana da Senhora do Socorro, em Albergaria, por ocasião das jornadas sociais da ACR, salvo erro em 1992.
Obrigado Simone, Roger e Helena Inês, que me fez chegar este livro. Ao longo de toda a leitura, cruzei muitas vezes as histórias relatadas com a minha experiência na agricultura e na ACR. Como escreveram na contra-capa, “não é normal que as gentes da terra tomem a palavra – no caso, a caneta – para contar a sua vida”, mas quiseram avisar-nos sobre “a idolatria do poder e do dinheiro que colocam em risco a Terra” porque acreditam que “o futuro continua aberto aos atores de uma civilização regenerada que escute as lições da natureza e salvaguarde a nossa casa comum”. (publicado no "mundo rural" Novembro -Dezembro 2021)