Ao princípio, parecia que a agricultura seria dos setores menos afetados pela crise do coronavírus. Na eminência de quarentena, os portugueses, como todos os povos do mundo, correram aos supermercados, esqueceram as alergias ao glúten e lactose e escoaram as prateleiras de alimentares. A poluição baixou e a culpa não era das vacas. Tenho saudades desses bons tempos em que, com saúde e barriga cheia, esse era o maior problema do mundo ocidental. Entretanto, a procura pelos produtos básicos e capazes de armazenar por longos tempos na despensa obrigou os supermercados a simplificar a oferta e reduzir a variedade de produtos disponíveis, deixando de fora queijinhos e produtos mais “gourmet”, mais específicos… produtos que também viram fechados os mercados locais, hotéis e restaurantes. Aqueles produtos que nos diziam que fazia sentido apostar. E foi assim, com as queijarias cheias, sem mercado e capacidade para armazenar mais queijos, que produtores de leite de ovelha e cabra se viram obrigados a deitar fora o leite ordenhado… produtores de leitão ou cabrito não tem saída e estava tudo pronto para a Páscoa… Páscoa onde se iriam gastar tantas flores, mas não há igrejas para enfeitar, não se pode levar aos funerais, não há festas, não há exportação porque todos os países do mundo estão assim e o impacto é brutal. E setor do vinho faz contas à vida. E à medida que a pandemia se alastra e as medidas de contenção se replicam com mais ou menos dias de atraso, isto vai acontecendo por todo o mundo. Nos Estados Unidos e no Canadá, milhões de litros de leite de vaca vão para o esgoto neste momento (menos mal que são apenas alguns e o prejuízo vai ser assumido por todos).As cadeias de comercialização partiram-se e ainda não encontraram alternativas. Em Portugal, a alta percentagem de leite UHT livrou-nos desse problema, por enquanto, e é importante evitar especulação de baixar preços ao produtor e subir ao consumidor como está a acontecer no Brasil.
Os consumidores não desapareceram, mas estão presos em casa. Apesar dos números trágicos de mortes, não se prevê uma redução da população. Mas a crise económica, consequência da doença e das medidas que tiveram de se tomar para evitar uma tragédia maior, vai reduzir o rendimento disponível das famílias e manter a procura nos produtos básicos. Vai levar muito tempo, não consigo prever quanto, até voltarmos a encher shoppings e restaurantes. Não sabemos como e quando vai recuperar o turismo (e a aviação). Cruzeiros, tão cedo, podem esquecer. Entretanto, os restaurantes passaram a takeaway; As entregas multiplicaram-se. Através das redes sociais, os produtores procuram os clientes. A venda de cabritos transmontanos parece estar a ser um sucesso após apelo e partilha nas redes sociais. A distribuição, perante apelos dos produtores e do governo (e dificuldades de importação) promete comprar mais aos produtores locais. Produtores de leite de cabra organizaram-se através da sua associação para concentrar o leite e enviar para secar em Espanha (não há capacidade para secar esse leite em Portugal). Há falta de mão de obra para a agricultura, por causa do fecho de fronteiras, mas há muita gente em lay-off (e o desemprego a subir, certamente) que poderá deitar a mão. Na França e a Austrália já falam abertamente disso. Não vai ser fácil, mas é possível dar a volta. A água corre sempre para o mar, contornando obstáculos, apesar das barragens que possam aparecer. Importante é não entrar em desespero e não tornar pior o que já é mau. Havendo saúde, o resto resolve-se e paga-se com o tempo. Choramos, desanimamos, praguejamos, rezamos, bufamos, mas resistimos. Em grupo, é mais fácil. Seja numa cooperativa, comercializando em conjunto, ou numa associação que represente o grupo, que reúna informação, transmita ao governo, faça contactos, peça ajuda, organize medidas extraordinárias, abra mercados on-line e entrega de encomendas. Mais cedo ou mais tarde, quando houver máscaras para todos e as medidas de segurança adequadas, tem de se reabrir os mercados locais. A agricultura é essencial. "A vida encontra sempre um caminho", como diziam no Jurassic Park. Há portas que se fecham com estrondo mas janelas que se abrem com esperança. #carlosnevesagricultor #puxarparacima