Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]



A soberania alimentar de Portugal e a "Desglobalização"

por Carlos Neves, em 04.06.22

FB_IMG_1654324363358.jpg

Só temos cereais para um mês em Portugal. Parece mau? Já foi pior. Quando a guerra começou só tínhamos cereais para 15 dias. Como de costume, há navios a caminho de Portugal e cereais “comprados” para abastecer o país até final do ano mas muito mais caros, como é evidente. O mercado já estava sob pressão e a guerra na Ucrânia veio agravar tudo. Era moda poupar no armazenamento, mas algo está a mudar. O mundo que nas últimas dezenas de anos avançou em força para a globalização está agora num processo de “desglobalização”. Até onde irá, não sei.

Portugal deu um enorme contributo para a globalização com os descobrimentos. As vantagens do comércio internacional foram defendidas em 1817 pelo economista inglês David Ricardo baseando-se no Tratado de Methuen, o “Tratado dos panos e dos vinhos”, realizado entre Portugal e a Inglaterra em 1703. Segundo essa teoria económica, cada país ganha em exportar aquilo em que é mais competitivo e importar de outros países aquilo em que é menos produtivo. O desenvolvimento dos transportes e a paz global das últimas décadas aumentaram a globalização. A China tornou-se a fábrica do mundo e o que nos permitiu ter acesso a coisas de baixo preço e tirou da fome e miséria milhões de chineses, importando comida do resto do mundo.

Entretanto, um navio encalhou no canal do Suez e provocou um enorme congestionamento de mercadorias que paralisou fábricas em todo o mundo. Depois o combate à pandemia fechou fronteiras, faltaram chips, a pandemia foi bloqueando economias e os transportes de forma desfasada e agora a guerra na Ucrânia veio mostrar a dependência energética da Europa em relação à Rússia. O mundo ocidental percebeu que, a troco de coisas baratas, comida barata e energia barata, estava refém de parceiros económicos perigosos. 

Do prado ao prato, é preciso aumentar o armazenamento. A Alemanha aconselhou os cidadãos a ter em casa reservas para 10 dias. Penso que é um bom conselho para acautelar uma tempestade, um ataque informático, uma greve ou outra coisa que impeça os transportes de funcionarem como é habitual. Não deixar esvaziar a despensa, o depósito de combustível ou os silos de ração da vacaria. Ter alguma produção própria e manter os stocks altos. 

A Europa dos excedentes que tomava decisões de “barriga cheia” já tinha esquecido o objetivo inicial da PAC, acabar com a fome após a segunda guerra mundial. Nas últimas revisões, a PAC tornou-se cada vez menos alimentar e cada vez mais ambiental. Nos últimos meses está tudo a ser repensado. O primeiro objetivo da agricultura tem que ser a alimentação. 

Não é tempo de voltar à policultura de subsistência em que cada família comia aquilo que cultivava, mas quem puder cultive alguma coisa no seu quintal. Não é tempo de voltar a fronteiras nacionalistas, mas penso que o bloco europeu deve ser autosuficiente na alimentação. Apesar da agricultura ter sido “moeda de troca” nos acordos comerciais com os países para onde a Europa queria vender carros e outras tecnologias, também na agricultura temos vantagem em importar máquinas, fertilizantes e muita coisa que não temos cá e, por outro lado, vender a melhor preço alguns dos nossos produtos. 

Talvez não seja razoável produzir 100% do trigo em Portugal, mas podemos produzir mais do que os 5% atuais. Podemos produzir mais milho e arroz. Podemos produzir mais frutas, hortícolas, vinho e muitos outros produtos em que tenhamos vantagem e que podemos exportar para quem nos vende o trigo e outros produtos. Podemos substituir os 500 milhões de euros que importamos de leite e produtos lácteos de valor acrescentado por produtos nacionais. Podemos fazer tudo isso se pagarem aos agricultores um preço justo que cubra os custos de produção. Não se trata de viver orgulhosamente só, trata-se de criar e manter reservas para estar seguro, ter poder negocial e não ir às compras com fome.

#carlosnevesagricultor

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 07:33



Mais sobre mim

foto do autor


Pesquisar

Pesquisar no Blog

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D