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Uma das melhores coisas de participar no associativismo agrícola a nível nacional é conhecer a gente fantástica que cultiva este retângulo e as ilhas que constituem Portugal.
Esta semana, no colóquio nacional do milho, tive o prazer de partilhar a mesa de almoço com alguns agricultores ribatejanos. A dada altura, a propósito da pequena dimensão dos nossos terrenos no Norte, apercebo-me que os agricultores do sul pensam que aqui no Norte os agricultores têm todos uma segunda atividade. Eu não tenho as estatísticas à mão para responder com exactidão, mas posso afirmar que isso talvez isso tenha sido comum no alto Minho ou em Trás-os-Montes, mas aqui no baixo Minho / Douro litoral sempre foi normal os agricultores dedicarem - se a tempo inteiro à "casa de lavoura". Tanto o meu avô como o meu pai, apesar de serem agricultores de pequena / média dimensão, conseguiram levar uma vida de "classe média" apenas com a agricultura. O meu pai apenas "trabalhou para fora" lavrando com a charrua nos primeiros anos após comprar o trator e essa, aliás, tem sido a opção atual de alguns colegas que cultivam os seus campos e aproveitam as máquinas para prestar serviços aos vizinhos.
É certo que também conheci um pouco mais para o interior, casais em que o marido era motorista e a esposa cuidava das vacas, mas aqui era menos frequente.
Mesmo recuando 20 ou 40 anos, agricultores que tinham então 5 a 10 hectares e 20 - 30 vacas conseguiram manter as famílias e pagar os estudos dos filhos até se reformarem ou passar a casa agrícola aos descendentes.
É certo que hoje temos de cultivar mais área, ter mais animais e ser mais eficientes para ter o mesmo rendimento, mas continuamos, nomeadamente os produtores de leite, a viver apenas da nossa atividade.
O meu pai explicava muitas vezes que foi possível manter aqui na região uma dimensão mínima das casas de lavoura e das parcelas de terreno, apesar de dispersas, graças à tradição do "morgadio". O filho mais velho ficava com as terras e com a obrigação de sustentar os irmãos solteiros. Os irmãos emigravam para o Brasil ou outros locais, iam para padres ou estudavam. As irmãs iam para freiras, casavam para outras "casas de lavoura" ou, ficando solteiras, ficavam sob protecção de quem tomava conta da "casa". Mesmo após o fim da lei do morgadio, nas partilhas, regra geral, houve, e ainda me parece haver, o cuidado de não partir as empresas agrícolas e as propriedades. Quem fica na "lavoura" herda os terrenos agrícolas e os irmãos herdam os terrenos que tenham mais valor por viabilidade de construção ou alugam ao "agricultor/a" os campos que lhes tocam na herança. Os que ficam na terra vão tentando comprar ou sobretudo arrendar os terrenos vizinhos para ganhar dimensão. Há "casas de lavoura" que desapareceram (para grande desgosto do meu pai) mas também há pequenos caseiros do passado que são hoje grandes empresários - e ele tinha (e eu também tenho) muito gosto de assistir a isso.
#carlosnevesagricultor
O preço do adubo disparou nos últimos meses, ainda antes da Rússia invadir a Ucrânia. Isso aconteceu por causa do aumento do custo da energia para as fábricas de fertilizantes e também por causa do aumento da procura de adubos, provavelmente ligada ao aumento da procura de cereais. Com a guerra, tudo se agravou. A Rússia era o segundo maior produtor de adubo azotado, potássio e o quarto de fósforo (os três macro-nutrientes) para alimentar as plantas. Nos micronutrientes, a Rússia é o 9º maior produtor mundial de cobre, molibdénio e zinco, e o 2º de cobalto, citando o site globalfert. Na Ucrânia também havia fábricas importantes de fertilizantes.
Para responder a este desafio, a União Europeia vai tentar a compra conjunta de adubos (não sei como e quando isso vai funcionar) e o nosso governo irá incentivar / estudar o uso de adubos orgânicos como alternativa. Também não sei o alcance desta medida, será positivo para a pecuária sem terra, como as suiniculturas, cujos efluentes passarão a deixar de ser um problema para ter um valor. Isso é o que desde sempre tentamos fazer na produção de leite, usando os excrementos das vacas (os efluentes pecuários) para adubar a terra que cultivamos, apesar de algumas pessoas chamarem a polícia por causa do mau cheiro ao espalhar o chorume e o governo aprovar regulamentos como o novo REAP (portaria 79/2022) que dificultam a sua utilização em todos os terrenos. Sobre a valorização do chorume, quero referir que os professores Henrique Trindade (UTAD) e David Fangueiro (ISA) tem feito investigação relevante na matéria nas últimas décadas. Nomes a pesquisar por quem quiser saber mais.
Conselho prático: enterrar rapidamente para abafar o mau cheiro e não perder o azoto por volatização. Tenho vários hectares de erva para colher agora que apenas levaram chorume antes de sementeira em outubro e outros onde além do chorume à sementeira apenas fiz cobertura com 100 kg de nitro27.
Uma coisa que se torna ainda mais importante é analisar a terra antes das adubações. Como escrevi há poucas semanas, “uma análise de terra custa menos do que um saco de adubo e permite poupar e ganhar muito mais". A frase tem mais de 30 anos mas ganhou agora um valor redobrado ou triplicado como o adubo. Um nutriente em falta limita o aproveitamento de todos os outros. Adubar em excesso é deitar dinheiro fora e pode ser mau para o ambiente.
Mais duas coisas simples que podemos fazer no caso do milho: 1) adubação localizada com o semeador, deitando apenas o adubo junto à linha da sementeira, em vez de espalhar em todo o terreno. Adubação fracionada: usar uma pequena quantidade à sementeira, por exemplo de adubo “starter”, que é aplicado em pequenas quantidades no micro-granulador que quase todos os semeadores têm e depois colocar o resto na altura da sacha. Certamente haverá ainda outras técnicas que se podem usar e quem entender pode partilhar connosco. Sejam benvindos a uma discussão positiva.
#carlosnevesagricultor
Participei recentemente numa reunião, no Ministério da Agricultura, para analisar as consequências da guerra atual no abastecimento de cereais para alimentação humana e animal. Foi referido que a Ucrânia representava apenas 3% da produção mundial de milho mas 18% do que era comercializado e 40% do milho que Portugal importava. É certo que há alternativas (África do Sul, América do Sul e do Norte) mas como a oferta no mercado se reduziu bruscamente o preço disparou. Citando “A better Way to Farm”, a página de um consultor agrícola norte-americano, Rússia e Ucrânia representavam 30% das exportações de cevada, 19% do milho, 29% do trigo e 78% do girassol. Voltando à reunião, também foi explicado que a Ucrânia produzia muita colza, que agora a alternativa é usar soja e portanto o preço da soja também está a subir, o que afeta tanto o óleo de soja usado na alimentação humana como o que sobra da extração do óleo, o bagaço de soja que é usado na alimentação animal.
Nestas alturas há sempre especulação e o mercado deve ser vigiado e regulado, mas penso que, mais útil do que denunciar os supermercados por atualizar preços ou acusar os olivais super-intensivos de ocuparem o espaço dos cereais que não eram rentáveis, será mais rápido e mais lógico pensar em substituir o óleo de girassol por azeite, que está mais barato. Aliás, há 30 anos faziam-se piadas com “giracídio”, girassol que se se semeava em alguns terrenos sem condições apenas para receber o subsídio. Há 20 anos um colega contava-me que tudo aquilo que recebia da venda do milho (cultivado em condições) dava exatamente para pagar as despesas e a margem de lucro era o que recebia nas ajudas da PAC. Deve ser por isso que agora está a produzir frutos secos.
Temos de perceber que, mesmo que agora, de repente, quiséssemos produzir milho, trigo, colza ou girassol, mesmo que valesse dez vezes mais do que no ano passado e com garantias de preço estável durante uns anos, só daqui a muito tempo seria a colheita e essa produção vai exigir mais adubos, que também estavam a vir de forma significativa da Ucrânia e da Rússia e energia que também está mais cara.
Voltando à reunião, quase no fim, entre várias coisas interessantes, um senhor ao meu lado disse que era urgente parar de queimar cereais nos biocombustíveis. Não fixei o valor, mas é uma quantidade astronómica de milho que é usado para bioetanol ou de colza para biodiesel. Vocês podem não ter reparado, mas não é só petróleo que metem no tanque do carro. Reparem na fatura do gasóleo. A última que aqui tenho diz que 11%, a “energia renovável”, é biocombustível, o que fazia sentido para usar menos combustíveis fósseis. Uma coisa positiva que descobri é que, em Portugal, 60% desse biocombustível é proveniente do óleo alimentar usado. Assim, mais do que ocuparem os noticiários com os detalhes militares da guerra, talvez seja útil explicar como podemos poupar energia, reciclar mais óleo usado e reduzir, a nível europeu ou mundial, de forma provisória, a utilização dos cereais e oleaginosas nos biocombustíveis, dando prioridade à alimentação humana ou dos animais que nos alimentam. Como poderão ver nos próximos meses, será mais fácil baixar o preço dos combustíveis do que do óleo de girassol, de soja e de toda a comida. #carlosnevesagricultor
No final da segunda guerra mundial havia fome na Europa e a Política Agrícola Comum (PAC) nasceu para a combater.
Não há outras políticas europeias de igual relevância, mas o sucesso da PAC tornou-se um problema. À fome sucedeu um excesso de produção e a Europa passou a tomar decisões de barriga cheia. Foi correto controlar excedentes e dar atenção às funções ambientais da agricultura, mas, como se está a ver, é perigoso esquecer a função base da agricultura, produzir alimentos próximos e seguros.
Depois de meses a culpar as vacas por libertarem 5% dos gases com efeito de estufa, (esquecendo o carbono captado pelas plantas que as vacas comem) e a dizer que era preciso deixar de comer bifes para salvar o mundo, veio a seca e vieram as críticas aos agricultores por usarem água a produzir alimentos que não eram rentáveis. Aconselhava-se a importação. Veio a guerra e mudou tudo.
A comida barata já não é um dado adquirido e o mundo ocidental olha com desespero à procura de alternativas aos campos ucranianos. O biogás (aproveitamento do metano presente nos excrementos dos animais) é uma opção para substituir algum gás russo. As alternativas aos cereais ucranianos existem, mas estão longe e vão ficar cada vez mais caras, devido à especulação de quem vende e ao açambarcamento de quem compra.
Sendo otimista, penso que não faltará comida para os nossos animais ou para os nossos cidadãos, mas ficará certamente mais cara. É tempo de o Governo intervir para acudir aos mais necessitados (cidadãos ou produtores) e regular o que for possível num mercado livre, mas sem libertinagem. Sem voltar à "campanha do trigo", é preciso pensar em reservas estratégicas de produção e armazenamento de alimentos. Ouvir agrónomos e agricultores. No caso da produção de leite, sendo evidente que o mercado não funcionou em Portugal nos últimos anos, faz sentido procurar um mecanismo para ligar o preço de referência à evolução dos custos de produção e ao mercado dos produtos lácteos a nível europeu, envolvendo e comprometendo indústria e distribuição, para que a produção de leite em Portugal não desapareça ou se reduza para os níveis dos cereais.
*Produtor de leite e secretário-geral da Aprolep
(publicado no Jornal de Notícias a 17 de março de 2022)
https://www.jn.pt/opiniao/convidados/amp/nao-tomar-decisoes-de-barriga-cheia-nem-vazia-14685625.html?fbclid=IwAR2EVf8j6SZ1EUfyp8mzIC7VTv03Z8kHmshfaIsncGsZMFL7HRVVNa6Sn90
O passado recente dos produtores de leite portugueses pode resumir-se na metáfora de alguém que corre atrás da cenoura pendurada num pau que transporta.
Durante anos, disseram-nos que a nossa difícil situação iria melhorar. Piorou. Passámos 2021 com sucessivos aumentos dos custos de produção sem o correspondente aumento do preço do leite ao produtor, ao contrário do que sucedeu no resto da Europa, onde o preço médio passou os 41 cêntimos em dezembro, quase 10 cêntimos acima do preço médio em Portugal.
Os ligeiros aumentos no preço do leite registados no início de 2022 vieram com um ano de atraso e foram absorvidos por novos aumentos de custos.?Para agravar, temos de fazer mais dois furos num cinto que já estava bem apertado: um "furo" por causa da seca que nos limita a produção de alimentos para os animais e outro, ainda impossível de calcular, motivado pela guerra na Ucrânia, celeiro da Europa, origem de 40% do milho importado por Portugal, de outros cereais e até dos adubos de que precisamos.
Hoje, a nossa realidade tem algo de similar com a situação da Ucrânia, embora numa escala completamente diferente. É mil vezes pior estar debaixo de bombas do que em asfixia económica, mas o abandono dos ucranianos pela comunidade internacional lembra o abandono que sentem os produtores de leite em Portugal. Abandono da indústria e da distribuição que só pensam em si. Abandono de um Ministério da Agricultura paralisado e de um primeiro-ministro que ignora a produção de leite.?
Para além de ajudas pontuais, os responsáveis políticos têm que tomar medidas para que suba o preço do leite ao produtor na medida em que sobem os custos. Sem isso, os produtores de leite, cansados e abandonados, vão continuar também a abandonar um setor que os mais novos não querem abraçar. Aos poucos que queiram resistir resta continuar a luta e não parar de gritar até que alguém acuda.
*Produtor de leite e secretário-geral da Aprolep
(publicado no Jornal de Notícias a 8 de Março de 2022)
https://www.jn.pt/opiniao/convidados/produtores-de-leite-abandonados-14658214.html?fbclid=IwAR21E9TjzP1h8cEGplmH88LxiOh-mXqxQoFzg2ILYulnar2weoc8xOhu4bM