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Costuma dizer-se que os vagões vazios do comboio são os que fazem mais barulho. O ditado também é válido para carroças, reboques agrícolas e especialistas sobre a seca. Por exemplo, ainda não vi entrevistar especialistas em rega para mostrar como poupamos água na agricultura sem deixar a sociedade passar fome.
Eu não sou “especialista”, mas quero acrescentar mais uma reflexão a partir da minha experiência e da cabine do trator. Segunda-feira de manhã, estando vazia a manjedoura das novilhas, fui cortar erva. O ideal era esperar pelo meio-dia, porque a erva estava molhada, mas os animais precisavam de comer. As gotas de orvalho douradas pelo sol que nascera há pouco desafiavam-me a fotografar e partilhar as imagens, com o orgulho habitual do agricultor que mostra a sua colheita de batatas, milho, fruta, ou de um arquiteto que mostra a última obra. Num ano normal teria publicado essas fotos, mas contive-me, pensando nas pastagens secas de outros agricultores por todo o país, sobretudo no interior e no Alentejo.
Escolhi apenas umas imagens mais bonitas para o instagram e para as “stories”, sem mostrar exactamente o que era, mas depois pensei que seria útil falar sobre isto. A erva que consegui agora colher nesta parcela, o campo do sol, semeada em outubro, sem rega nem adubação (levou chorume antes da sementeira) é uma “mistura biodiversa de aveia, azevém, ervilhaca e trevos anuais". Trabalho de investigação de uma empresa de sementes. Fizeram um ensaio aqui perto e publicaram os resultados. Escolhi esta opção por ser a mais rústica, com boa produção em colheita precoce e estou a gostar dos primeiros resultados.
Por curiosidade, eu tinha deixado de semear aveia, como o meu pai usava, porque ao semear cedo variedades precoces e não conseguindo gastar toda a erva nem armazenar, se não cortássemos, a aveia caia, “melava” e matava as outras ervas. Ou então em abril ganhava “ferrugem” e perdia qualidade. Nos últimos anos voltei a usar aveia com variedades mais tardias, que funcionam melhor.
É isto a solução para todas as terras e regiões? Certamente que não! É só um exemplo para mostrar que a pastagem não é solução para tudo. Aquilo que observo é que este sistema de colher e armazenar a erva e o milho silagem é o mais resistente à seca. Mas não dá para todo o lado. Em cada tipo de solo, em cada clima diferente é preciso experimentar, colher dados, analisar e publicar resultados. Investigar e comparar culturas, variedades, técnicas de rega, consumos de energia, estratégias de economizar água e resultados económicos. É preciso investigar e comunicar. Isso é agricultura moderna, de precisão, a agricultura que funciona, a que nos permite sobreviver como agricultores e alimentar os outros 98% da sociedade. Investigação das empresas, das cooperativas, das casas de sementes, das universidades, agora que a tarefa de investigação agrícola parece ter sido transferida das estações agrárias para as universidades. Precisamos de investigar mais, comunicar mais, partilhar mais e mandar menos “bitaites” genéricos sobre a agricultura que “gasta” 75% da água. Agrónomos, cheguem-se à frente neste debate!
A chuva deste domingo de fevereiro, além de valer ouro para regar a terra, deu-me a oportunidade para terminar a leitura dos "Fidalgos da Casa Mourisca", de Júlio Dinis.
O meu pai costumava dizer, com alguma solenidade, "os livros são os nossos melhores amigos, só nos pedem que não os emprestemos". Felizmente, neste ponto, não cumpriu o que dizia. Há alguns meses, um seu velho amigo, que eu já não via há muito tempo, apareceu de surpresa, caminhando com dificuldade e conduzido pela neta, para devolver um livro que o meu pai lhe emprestara. Por esse acaso marcante e singular, este livro passou para o topo da lista de leituras.
Júlio Dinis era o autor preferido do meu pai, pela mão de quem li muito cedo "As pupilas do senhor reitor" e "A morgadinha dos canaviais". Ler os fidalgos foi beber um pouco da fonte onde o meu pai foi buscar os seus valores e a sua visão da agricultura, do trabalho, o gosto de ver os agricultores que prosperavam e a preocupação que sentia pelo fim de algumas “casas de lavoura”. Uma leitura boa para me abstrair das intrigas do quotidiano, rir com algumas cenas e emocionar-me com outras.
Médico e escritor, Júlio Dinis nasceu no Porto em 1839 e morreu na mesma cidade com 31 anos, devido a tuberculose. Na busca de cura para essa doença, foi viver primeiro para Gaia e depois para a casa de uma tia em Ovar. Dessas andanças rurais resultou um conhecimento da agricultura, dos agricultores e do mundo rural à volta do Porto, conhecimento que demonstra nas descrições minuciosas das desfolhadas, nos diálogos cúmplices e nas ricas personagens que criou, do José das Dornas a Tomé da Póvoa.
Acho que ninguém escreveu sobre esta agricultura do Norte Litoral como Júlio Dinis. Miguel Torga teria idêntico conhecimento da agricultura transmontana, mais pobre, áspera e dura. Júlio Dinis escreveu com gosto e admiração pela gente das casas de lavoura que não tinha medo dos bois nem do trabalho, valorizando as inovações “já abonadas pela experiência de países mais cultos”. Criticou ou que viviam nos “desperdícios da corte” e deixavam “extenuar a terra e definhar-se a propriedade”, desejando que “a riqueza do país se desentranhasse do solo onde está enclausurada”.
Os mouros andaram por cá muitos anos. Talvez por isso neste século XXI Portugal ainda parece uma casa mourisca cheia de “fidalgos” que desvalorizam e criticam uma agricultura que desconhecem.
A chuva macia é capaz de regar profundamente, penetrar na terra e abastecer as reservas de água subterrâneas. Os aguaceiros pesados levantam pedras e causam enxurradas de entulho. Acontece o mesmo com as discussões sobre a seca e falta de água. Em tom de acusação, diz-se que a agricultura gasta 75% da água, tal como os outros países do sul da Europa, ao contrário dos países do Norte onde chove como nos Açores e não é preciso regar. Curiosamente, barragens como o Lindoso, focadas na produção de energia, estão vazias e a que está quase cheia é aquela que tem como objectivo principal o regadio (a barragem do Alqueva), mas os “especialistas” insistem que não se devia regar milho em agosto no Alentejo, porque a água não chega ao solo. Subentende-se que seja por causa da evaporação. Se for de noite, já podem regar?
E se não for preciso regar, já podemos semear milho sem ser preciso importar como Singapura? Cerca de 15% do milho cultivado em Portugal não é regado. 25% do milho que cultivei o ano passado não teve rega. Mas isso exige condições especiais e tem outros custos. Há terrenos frescos que praticamente dispensam rega e outros onde simplesmente não há água disponível. Os agricultores baseiam-se na sua experiência, no aconselhamento técnico e pesam prós e contras antes de tomar decisões.
Vou contar a história do nosso “campo do sol”. Era uma parcela de terreno retangular, voltada a sul (por isso apanha o sol todo o dia) com um hectare e meio de boa terra, solo franco. Uma herança de família que foi dividida em 5 lotes pelos 5 filhos dos meus avós paternos. Em 1980, quando comecei a ajudar o meu pai nas regas, apenas um lote estava construído e cultivávamos a área restante. A água para rega era captada numa ribeira a 500 metros de distância, bombeada com a bomba “Perrot” acoplada ao trator Fordson e a meio caminho, no jardim da nossa casa, um motor elétrico ajudava ao resto do transporte. A água dessa ribeira era tingida à cor da moda pela fábrica de confeções Nórdica. Depois a fábrica fechou e vieram os esgotos domésticos. Só há muito poucos anos ligaram o saneamento. Mais próximo da ribeira as mangueiras rebentavam devido à pressão. Nos últimos metros a mangueira ardia anualmente por causa de uma vizinha que queimava os “valos” (as sebes à volta do campo) em frente à casa para os limpar quando vinha de férias da Alemanha. Acabámos com essa rega e passámos a levar a água ao campo com trator e cisterna. Quando assumi a empresa agrícola, num curso de “agro-gestão” realizado na Leicar, fiz as contas às horas de amortização do trator, cisterna e mão de obra. Segui o exemplo de um vizinho próximo com dois terrenos sem água de rega que conseguia colher milho porque semeava mais cedo uma variedade de milho de “ciclo curto”. Esse milhos crescem menos, mas amadurecem rápido e precisam menos água. Nunca mais reguei esse campo. Entretanto o terreno agrícola encolheu. Nos lotes dos meus tios foram construídas casas e no lote do meu pai passou uma estrada. Do campo do sol restam dois quintais que ainda cultivo sem precisar de rega. Um tem luzerna em sequeiro, no outro semeio milho “ciclo 200”, o mais cedo possível, e conseguimos colher milho para as galinhas da família. É o sistema perfeito? É o sistema possível atendendo às limitações. Tem um custo zero em rega, mas dá apenas metade da produção possível para o mesmo custo com semente, adubo e trabalho de lavoura e sementeira. Para semear mais cedo, colho mais cedo a erva, com menos produção. Não é um sistema perfeito. Posso fazer isso porque tenho outros terrenos com área suficiente para os animais. Outros colegas agricultores têm que aproveitar ao máximo a pouca área disponível.
Cultivo outros terrenos que não precisam de rega por serem terrenos frescos e consigo boas produções, talvez apenas 10 ou 20% abaixo do que conseguiria com rega. Em sentido oposto, há outros terrenos que me fazem gastar milhares de euros com a sua rega, porque a água não nos fica “de graça”. Tivemos de pagar as captações (furos, poços e minas) e temos de pagar bem cara a eletricidade ou gasóleo dos motores de rega.
"Cada nova solução trará novos problemas", aprendi esta semana. A vida real é mais complicada do que mandar uns bitaites para o ar. Convém ter alguma calma na discussão e mais respeito pelos agricultores.
#carlosnevesagricultor
No domingo à noite, meia hora antes da hora prevista para acabar os trabalhos na vacaria e poder jantar, ouvi o berro de um animal que me fez adivinhar um parto a começar. Ainda faltava uma semana para a data de parto prevista, 9 meses após a Inseminação, mas a natureza (o vitelo ou vitela) é que manda. Levei a futura mamã para a zona de maternidade, terminei as outras tarefas e deixei o processo avançar.
Na semana em que Portugal descobriu que está em seca, o PAN decidiu publicar mais uma mentira acusando a agropecuária de usar 75% da água. É falso. Segundo os dados disponíveis, 75% é a percentagem da água usada em toda a agricultura, desde os cereais para a cerveja até à vinha, fruta, hortícolas, framboesas, frutos vermelhos... O facto de usarem abelhas nas estufas, perdão, “túneis” da porta-voz do PAN não faz disso “agropecuária”.
É fácil de ver aqui a dualidade de critérios de quem nos acusa de dedo em riste. Juntam a pecuária à agricultura quando dá jeito criticar o uso da água. Esquecem a agricultura quando falam das emissões de gazes de efeito de estufa da pecuária, ignorando que o carbono que os animais libertam durante a digestão foi captado pelas plantas que os agricultores cultivam para alimentar os animais. Esquecem a floresta que faz parte do complexo agro-florestal. Noutras alturas ainda, quando dá mais jeito, falam da "indústria pecuária", para parecer que os alimentos são artificiais... Enfim...