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Colocaram-me mais uma questão por mensagem (podem continuar a perguntar): "Boas, amigo Carlos Neves, gostaria de saber como faz a apanha da erva verde, para alimentar as vacas no estábulo" (JR).
Ponto prévio: Noutras regiões do país, é normal levar as vacas ao campo pastar ou deixá-las sempre no campo. Aqui onde estou, na fronteira do Minho com o Douro Litoral, sempre foi normal cortar as forragens no campo (ervas ou milho) e levá-las para a “casa de lavoura” (complexo que compreende o estábulo, os armazéns e a casa do agricultor) para alimentar os animais abrigados. Recuemos um pouco no tempo. Quando o meu pai nasceu, cortavam a erva com uma foicinha ou “foucinhão”, e carregavam com uma forquilha para o carro de vacas que levava a erva para casa. Quando eu nasci, já os antigos “moços de lavoura” tinham emigrado para a França ou Alemanha (E os meus tios tinham ido para Angola). Devido à falta de mão de obra, o meu pai comprou em 1970, um corta-forragens da marca “JF” (ainda funcionam por aí algumas “taarup” idênticas) que cortava e carregava a erva para um reboque também “JF” que fazia a descarga da erva por tapete que arrastava para trás. Pela década de 80 o meu pai tentou construir uma engenhoca, um tapete colocado atrás do reboque para levar a erva até à manjedoura. Não resultou. Em 1986 fez como os outros agricultores que entretanto tinham comprado ganhadeiras rotativas para cortar a erva e “reboques forrageiros” para carregar e transportar até casa. As duas primeiras gadanheiras já foram para a sucata, mas o reboque ainda cá anda, após várias reparações. Também conhecido por “apanhador de erva”, este reboque tem um pick-up rotativo com molas (como as enfardadeiras) que apanham a erva do solo e depois um “transportador” que empurra a erva para dentro do reboque. Já não se fabricam estes “Santini” porque a fábrica italiana de onde veio faliu, mas ainda há peças e há outras marcas e opções a bom preço no mercado de usados. Como já referi numa publicação anterior, nas maiores vacarias opta-se sobretudo por usar a erva conservada sob a forma de silagem, rolos de fenosilagem plastificados ou fardos de feno. #carlosnevesagricultor
Vídeo do reboque a carregar erva: https://www.facebook.com/100063587865821/videos/344721753767682
Para ver a descarga da erva » https://fb.watch/a8fysRV8Rp/
Silagem de erva
Silagem de milho
Recebi uma mensagem a perguntar qual é a diferença entre “silagem de milho” e “silagem de erva”. Para os colegas agricultores a resposta é obvia, mas o objetivo das minhas publicações é comunicar com quem está fora do setor agrícola para mostrar como produzimos os alimentos, cultivamos os campos e criamos os animais.
A silagem de erva é erva “fermentada” e a silagem de milho é o resultado da fermentação de toda a planta de milho. A silagem de milho é mais energética e mais usada para alimentação das vacas leiteiras. A silagem de erva é mais rica em proteína, podendo ser usada na alimentação das vacas ou das novilhas em crescimento. Nos países mais a norte, onde o frio impede o milho de crescer, a silagem de erva é a única opção. Depois os agricultores, com ajuda dos nutricionistas, equilibram o bolo alimentar das vacas com rações à base de subprodutos de cereais, (por exemplo destilados de milho), oleaginosas (por exemplo bagaço de soja), polpas de beterraba, citrino, etc.
Como já escrevi num texto anterior nesta página, “o milho é cortado e ensilado diretamente, quando tem cerca de 30-35% de matéria seca. Como a erva verde, na primavera, tem muito mais humidade, o que iria dificultar a fermentação, cortámos, espalhamos e deixamos secar 2 ou 3 dias antes de recortar, carregar para os reboques, transportar para o silo, calcar a silagem para tirar o máximo de oxigénio e cobrir com plástico para que não possa voltar a entrar oxigénio. Se houver um buraco no plástico do silo (ou do rolo de erva plastificado) o oxigénio que vai entrar vai permitir o desenvolvimento de bolores e apodrecimento da matéria vegetal.
O processo de conservar forragem sob a forma de silagem é antigo, tendo já sido usado por egípcios e romanos, em fossas, silos e depois em barris de vinho, durante a época medieval. No século 19 o processo de ensilagem desenvolveu-se na Europa e chegou aos Estados Unidos.
Este processo de conservação baseia-se na fermentação láctica da matéria vegetal rica em açúcares, nomeadamente milho ou ervas como azevém, trigos, aveia, cevada, em que as bactérias lácticas, na ausência de oxigénio, degradam a matéria orgânica produzindo ácido láctico e outros ácidos orgânicos, baixando o pH, o que permite a conservação ao longo de todo o ano, podendo-se assim aproveitar as plantas da época de maior produção para alimentar os animais ao longo de todo o ano de forma estável e regular. Perdem-se alguns nutrientes em relação à erva fresca, mas a silagem é mais nutritiva e digestiva que o feno.
É possível que algumas pessoas tenham a ideia que alimentar as vacas com silagem é um processo moderno e artificial, por oposição à alimentação direta na pastagem com erva fresca. Pelo contrário, como expliquei atrás, a silagem é um processo natural com milhares de anos. Nem todos os países ou regiões têm condições de pastagem durante todo o ano ou possibilidade para deslocar os animais ao pasto. Por isso as silagens de milho e erva são a base da alimentação das vacas que produzem a maior parte do leite no mundo."
#carlosnevesagricultor
Dar às nossas vacas uma "ceia de natal" "reforçada" com a erva nova, antes de nos retirarmos para a nossa ceia de natal, era uma tradição antiga. A chuva prevista para os próximos dias deve impedir que cumpramos essa tradição, mas com as silagens de erva e de milho que temos armazenadas não faltará comida para os nossos animais. Aproveitei ontem e hoje as últimas horas de "bom tempo" para cortar e trazer erva fresca para os animais.
#carlosnevesagricultor
O título deste texto é também o título de um livro que recebi de presente de uma pessoa amiga que conheci nestas andanças da ACR. Trata-se da autobiografia ou, como referem na capa, do “itinerário humano e espiritual de um casal de camponeses” franceses, Simone e Roger Leliévre, que foram dirigentes dos movimentos de jovens e adultos da Acção Católica Rural (ACR) em França e da Fimarc.
Achei o título tocante. É uma síntese brutal das suas e das nossas vidas. Nós, crentes, acreditamos que somos ao mesmo tempo filhos do céu, mas também filhos adotivos da terra enquanto estamos cá de passagem. Mas, além disso, nós, rurais, mais ou menos envolvidos no trabalho da terra, filhos ou netos de agricultores, somos “filhos” da agricultura, do meio rural e de toda a cultura ligada à terra. Nesta consciência de “filhos” há também uma humildade e uma simplicidade desarmantes que atravessam todo o livro.
Roger é natural da Normandia, no norte litoral da França. Simone nasceu a 600 km para o interior, próximo da Alemanha. As famílias de ambos dedicavam-se à agricultura desde tempos imemoriais. A sua infância foi marcada pela agricultura de subsistência e pela invasão alemã da segunda guerra mundial. Na juventude aderiram à JAC / JACF (juventude agrária católica masculina e feminina) e conheceram-se em Paris quando ambos estiveram como dirigentes leigos do movimento com responsabilidades de coordenação a nível nacional. Estiveram no congresso internacional de jovens rurais realizado em Lurdes em1960, onde o meu pai e outros jovens rurais portugueses também participaram.
Depois de casarem, decidiram instalar-se na agricultura, na década de 60, seguindo a profissão que tinham aprendido com as suas famílias. Devido à pequena dimensão da agricultura das famílias de origem, foram emigrantes no seu próprio país à procura da sua “terra prometida”, recorrendo a um serviço público que servia para “encontrar terra para gente que não a tem e gente para terra que não tem gente”.
Seguindo um conselho muito útil, os primeiros meses foram passados em estágios. Isto é muito importante mesmo para quem cresceu na agricultura, aprender formas de trabalhar de uma forma diferente da nossa família. Penso que mais estágios aumentariam o sucesso da instalação de jovens agricultores também no nosso Portugal do século XXI.
Encontrada uma quinta disponível, o início da atividade agrícola de Roger e Simone decorreu numa sociedade com outro casal de jovens agricultores, cultivando campos e criando vacas leiteiras nos terrenos e estábulos das duas famílias. A sociedade surgiu como opção devido a terem poucos recursos económicos e na expetativa de poderem ter tempo livre pela repartição do trabalho, mas ao fim de poucos anos romperam a sociedade por dificuldades de relacionamento cujos pormenores são omitidos no livro. Voltaram à “estaca zero” e durante alguns anos criaram vacas até que um surto de tuberculose no rebanho os levou a deixar a produção de leite (o que lhes permitiu libertar-se da “prisão das vacas leiteiras” que os impedia de visitar a família distante) e passaram à engorda de vacas limousine para carne e outras atividades como engorda de perús para o Natal e depois gansos. Simone especializou-se na criação de coelhos, de modo que foi até convidada a dar uma palestra, sendo apresentada como a “Senhora Lebre (Lelievre) que nos vai falar da sua criação de coelhos”. A audiência desatou a rir.
Tendo começado a receber turistas em regime de “turismo rural” familiar, essa foi também, durante anos, a sua oportunidade de fazer férias e visitar as suas famílias de origem, deixando a tomar conta da quinta e dos animais uma família que vinha lá passar férias;
Mais tarde, organizaram campos de férias pedagógicos para crianças. Durante anos foi um sucesso na aproximação das crianças ao mundo agrícola e onde se envolveram os quatro filhos do casal, já crescidos, mas, ao longo do tempo, o aumento das exigências em termos de regras e regulamentos tornou-se desencorajante. Ainda assim foi uma atividade que deixou excelentes recordações, como a menina que na hora de partir perguntou se não tinham para venda, como recordação, um perfume com os “cheiros da quinta” que ela adorava.
Há um capítulo do livro dedicado à disputa de terras entre agricultores vizinhos. O que aconteceu na França e continua a acontecer em todos os países desenvolvidos ou em desenvolvimento é a redução do número de pessoas que se dedica à agricultura e do número de quintas / empresas agrícolas. Os vizinhos que pretendem continuar na agricultura procuram alugar ou adquirir essas terras para ganharem dimensão. Roger foi chamado a mediar um conflito entre vizinhos que após ofensas estava a caminho do tribunal. Por cá não conheci casos tão extremos, mas o fenómeno é idêntico. É assim em todo o mundo agrícola. A opção é crescer ou fechar. Outro fenómeno associado é o endividamento dos agricultores. A substituição da mão de obra tradicional por máquinas cada vez maiores, mais complexas e mais caras, exige um investimento que afoga em dívidas muitos agricultores, num mercado em que não controlam os preços de compra e de venda dos produtos. Lá como cá.
O livro relata ainda a experiência da participação de Simone na gestão autárquica, o envolvimento de ambos no associativismo agrícola, o acidente de trator que capotou sobre Roger e a que sobreviveu “por milagre”, o auxílio a emigrantes, a sua consciência ecológica e o “porquê” das suas opções guiadas por uma “bussola” , um humanismo enquadrado na sua fé cristã. Tudo isso é inseparável da participação no movimento CMR (Cristãos em Meio Rural), a cujo secretariado nacional foram chamados já com os filhos nascidos, passando alguns anos em Paris e mais tarde dedicando dois mandatos à coordenação do movimento internacional da Ação Católica, a Fimarc. Entre as várias atividades há uma referência a um buffet gigante com 800 participantes e toda a diversidade de produtos oriundos de todo o pais. E essa referência levou-me à memória de um jantar memorável, à nossa dimensão, na Casa diocesana da Senhora do Socorro, em Albergaria, por ocasião das jornadas sociais da ACR, salvo erro em 1992.
Obrigado Simone, Roger e Helena Inês, que me fez chegar este livro. Ao longo de toda a leitura, cruzei muitas vezes as histórias relatadas com a minha experiência na agricultura e na ACR. Como escreveram na contra-capa, “não é normal que as gentes da terra tomem a palavra – no caso, a caneta – para contar a sua vida”, mas quiseram avisar-nos sobre “a idolatria do poder e do dinheiro que colocam em risco a Terra” porque acreditam que “o futuro continua aberto aos atores de uma civilização regenerada que escute as lições da natureza e salvaguarde a nossa casa comum”. (publicado no "mundo rural" Novembro -Dezembro 2021)