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Tá bô p'ra comer o ganhado!

por Carlos Neves, em 27.10.20
Lá fora chove. Chuva macia, boa, certinha, daquela que se infiltra no solo sem arrastar a terra fértil para os rios e para o mar. Boa para regar as sementeiras de erva do outono, boa para recuperar as reservas subterrâneas de água e boa ainda, li ou escutei algures, para engordar as castanhas mais atrasadas.

Ali na vacaria, à mangedoura, abrigadas e enxutas, vacas e novilhas comem o que cultivámos e guardámos, a silagem de erva do inverno passado e a silagem de milho deste verão, condimentadas com um pouco de palha e ração qb. Hoje está mais agradável ali que na pastagem.

Chuva boa de morrinha, mas dia morrinhento, triste e deprimente por causa da mesma chuva. Algures na América do Norte já cai neve e uma colega agricultora fala em colocar a árvore de natal. O fenómeno deve ser global, porque na rádio falavam do mesmo, da árvore de Natal, não da neve, embora ontem já tenha nevado em alturas do Barroso, Boticas. Coisas boas que sabemos pela internet, não é só notícias e contra-notícias de covid.

Natal já? Calma, ainda faltam dois meses. Não gastem já o Natal. Quando o presidente falou em repensar o natal não era para celebrar antes dos Santos, era só para não ter 50 ou 100 pessoas à mesa.

Eu sei que “dos Santos ao Natal é um salto de pardal”, mas ainda falta o S. Martinho, o verão de S. Martinho e as castanhas. Castanhas boas e com produção a sério vem de Trás os Montes, mas por aqui junto ao mar também há castanheiros e castanhas. Já colhi e comi meia dúzia delas de um pequeno castanheiro plantado na bordadura dos campos, ao pé da ribeira. (e mais algumas que a minha esposa trouxe do mercado).

Ainda há por aí bastantes castanheiros. Antigamente havia mais, mas foram-se cortando porque a sombra não deixava crescer o milho, porque ficou mais caro mandar fazer a mobília de madeira de castanho do que comprá-la e a baixa produção de castanhas ainda tinha de ser dividida entre o dono e a rapaziada que por esta altura batia todos os castanheiros da região. Apesar disso, há 30 anos, quando andávamos na silagem, então com a máquina que cortava um linha de milho de cada vez, enquanto esperava pelo reboque ainda dava tempo para encher os bolsos e a caixa de ferramenta do trator com as castanhas que à noite assávamos no fogareiro com carvão ou no forno ainda quente do fogão a lenha. Hoje, para ter menos trabalho, pode-se usar a torradeira / sandwicheira elétrica, não tem o mesmo sabor mas é fácil e rápido.

Pois, já estamos a ver que não vamos ter os magustos do costume, mas podemos “repensar o S. Martinho e os magustos”. Pode ser em zoom, com sala de chat do facebook ou no sossego da família nuclear, podemos comer umas castanhas regadas com um bom vinho, vinho do Porto, ou sumo ou o que quiserem.

Disse-me o José Macedo, produtor de leite e de castanhas, a quem roubei esta foto, que o mercado da castanha está mais difícil por causa da pandemia. Vamos ajudar? A castanha faz parte da história da nossa alimentação. Comprar, assar e comer castanhas sabe bem e faz bem à economia de Portugal. Em dias morrinhentos ainda sabe melhor.

#carlosnevesagricultor

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publicado às 21:53

O nome da terra

por Carlos Neves, em 24.10.20

montezelo.jpg

Vocês sabiam que cada campo, cada parcela de terra tem um nome? Sexta-feira  terminei as sementeiras no campo da “Arroteia de baixo”. Do outro lado da estrada está outro campo, a “Arroteia de cima”, ainda à espera da semente. Uma “arroteia” é um terreno que foi desbravado, provavelmente há centenas de anos. O meu pai conta que estas parcelas de terra, compradas pela minha avó, pertenceram em tempos ao convento Franciscano de Azurara, que podem ver ao fundo, na foto tirada  hoje na sementeira do campo de “Montezelo”.  Talvez este nome queira significar um pequeno monte, como é o caso.  É possível que quase todos os terrenos que cultivo por aqui, entre Árvore e Azurara, tenham sido pertença desse mosteiro, embora na história dos registos das propriedades haja mais referências ao convento de S. Bento de Vairão. 

Também semeei o “Campo do Sol”, que deve ter sido batizado assim por estar num declive exposto a sul e, portanto, ao Sol. Passei ainda pelo “Campo do Outeiro” (outro “pequeno monte”). Do outro lado da estrada velha, está o “Brejo”. “Brejo” significa pântano. Hoje é um terreno enxuto, ligeiramente arenoso, mas estando junto à ribeira da Granja, devia ser um local húmido que terá sido drenado. Por causa dessa ribeira, cultivo várias parcelas que ficam na sua margem com o nome de de “campo da ribeira”. Temos depois de distingui-las: “Ribeira do Loureiro, Ribeira nova...

Também cultivamos uma “Agra”, que tal como “agro” significa “campo”. Há depois um “Campo da Bouça”, naturalmente junto a uma bouça, e o campo da “Bouça Aberta”, uma clareira rodeada de floresta por dois lados (talvez no passado fosse uma clareira no meio das bouças, daí o nome. Há ainda as cortinhas. Cortinha é o que se chama ao terreno que fica junto à casa agrícola. 

Estes nomes estão no registo predial dos terrenos, nas escrituras de compra e venda, nos contratos de arrendamento e nos registos que temos de fazer das sementeiras, adubações, colheitas e tratamentos. Precisamos desses registos para nosso controlo e alguns são obrigatórios por lei.

Podemos ainda dar novos nomes à terra. O meu filho Luís, que me acompanhou muitas vezes na mudança da rega durante este verão, batizou os campos conforme o sistema de rega. Tínhamos o campo da gota-a-gota, o campo da máquina verde, o campo da máquina vermelha e o campo da máquina suja (por causa do óleo de lubrificação que escorreu da corrente).

Cada parcela, cada campo, cada terreno tem um nome, uma história e características que aprendemos com os antepassados, que vamos aprendendo com a experiência e que num futuro breve poderemos aprofundar com a agricultura de precisão que, com recurso a sensores, imagens de satélite e sistemas informáticos nos permitirá cultivar cada metro quadrado de forma mais eficiente e sustentável.

#carlosnevesagricultor

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publicado às 23:02

Depois da noite vem a madrugada (sobre depressão e suicídio)

por Carlos Neves, em 18.10.20

nascer do sol.jpg

Esta semana, soube da morte de dois jovens por suicídio, um músico e uma enfermeira. Ambos sofriam de depressão e ambos foram certamente pressionados pela atual pandemia. 

Não costumamos falar de depressão entre agricultores, mas ela existe. A atividade agrícola com ar livre, exercício físico, contacto com os animais e o gosto de colher o que semeámos certamente são fatores de proteção. Mas o trabalho solitário, o fraco rendimento, a incerteza face ao futuro e a “guerra psicológica” de ativistas contra a agricultura e pecuária podem ser fatores de perturbação que potenciam a depressão entre a comunidade agrícola.

Num texto anterior sobre este assunto (Precisamos de falar - o suicídio entre os agricultores)  apontei duas explicações possíveis para, apesar das dificuldades económicas, termos em Portugal menos suicídios entre agricultores do que noutros países, como França e Estados Unidos. Referia-me à missa e ao café (local físico). O café era ponto de encontro, convívio e oportunidade para desabafar. A missa também, convívio no adro, abraço da paz no interior, espírito de comunhão, comunidade, consolação, esperança e tudo o mais que significa a religião para os crentes. 

O covid obrigou-nos a fechar cafés e igrejas. Já abriram, mas a distância que temos de manter não permite o mesmo contacto. Para evitar o crescimento descontrolado da pandemia (nenhum sistema de saúde público e privado seria capaz de dar resposta a toda a gente doente ao mesmo tempo), pedem-nos novamente para reduzir contactos e só viajar em caso de necessidade. Na europa há países que já impuseram recolher obrigatório e outros que fecham hoje bares e cafés.

O confinamento/isolamento dos agricultores na primeira fase da pandemia na primavera / verão tirou-nos as feiras agrícolas, mas tínhamos o trabalho nos campos com as atividades das sementeiras da primavera, tratamentos, regas, colheitas e sementeiras de outono. Chega agora o tempo, entre novembro e março, em que empresas, cooperativas e associações costumavam organizar reuniões, colóquios e cursos de formação. Aproveitávamos algum tempo livre disponível e animávamos os dias cinzentos e chuvosos do inverno. Não poderemos fazer isso presencialmente nos moldes habituais mas devemos organizar o que for possível para manter o contacto. 

No passado dia 10 de outubro celebrou-se o dia mundial da saúde mental. No Canadá, o meu colega Farmer Tim escreveu que celebrou este dia caminhando “pelo campo ondulado, passando por árvores pintadas, ao longo de estradas de cascalho e riachos borbulhantes. Respirei o ar fresco do outono e agucei meus sentidos para os sons do mundo natural ao meu redor. Por um curto período, minha mente foi aliviada de minhas preocupações opressivas.

Este foi um ano excecional, com muitos de nós presos em casa ou com nossas vidas viradas de cabeça para baixo. Para alguns, pode ter sido o ponto crítico de uma vida já turbulenta. Todos nós já estivemos estressados ​​de uma forma ou de outra.

Muitos de nós lutamos mais do que você imagina. As redes sociais estão cheias de histórias felizes, momentos divertidos e famílias sorridentes. No entanto, na realidade, ninguém tem uma vida perfeita e ninguém está imune aos efeitos do stresse mental. A boa notícia é que ninguém precisa lutar sozinho. Há ajuda e há pessoas dispostas a ouvir.

Hoje caminhei não só por mim, mas por amigos, famílias, vizinhos - e você. Limpar a minha mente e melhorar a minha saúde me dá força e resistência para tentar ajudar os outros, mesmo que seja apenas de uma forma pequena. Estamos todos juntos nisso e todos precisamos fazer a nossa parte”

Que podemos fazer para prevenir sentimentos depressivos? Citando Carla Teixeira, Psicóloga, “Prevenir a depressão passa essencialmente por ter um estilo de vida saudável e pedir ajuda aos primeiros sinais de alerta. Para além da alimentação equilibrada, do exercício físico e do número de horas de sono correto, evite ficar sozinho. (...) Contacte familiares e amigos” (...) Se tiver episódios de ansiedade, ataques de pânico ou alguma combinação dos sintomas referidos anteriormente num período superior a 2 semanas, não hesite: peça ajuda especializada.” 

Um abraço a todos os que se sintam sozinhos, desanimados ou deprimidos. Não posso fazer muito mais, além de continuar por aqui a escrever estas coisas e ler o que quiserem comentar. E obrigado ao António Campos de Famalicão que se levantou uns minutos mais cedo que eu e tirou esta foto do nascer do sol que serve para lembrar que depois da noite, das nuvens e da chuva o sol volta a nascer.

#carlosnevesagricultor

#diamundialdasaudemental

#WorldMentalHealthDay

#depressão

#suicidio

 

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publicado às 14:30

Pedimos desculpa pelo incómodo, prometemos ser breves

por Carlos Neves, em 09.10.20

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Estamos no início do Outono. A maioria dos agricultores já terminou a colheita do milho. É tempo de preparar a terra para a sementeira das ervas de Inverno. Antes da sementeira, temos de colocar na terra os estrumes resultantes da pecuária, sobretudo estrume líquido (chorume), composto por fezes, urina dos animais e águas de lavagem dos estábulos. Estamos a devolver à terra aquilo que os animais não conseguiram digerir e que vai servir de alimento para as plantas. 

Durante milhares de anos, foi esta a única prática possível para fertilizar a terra, além do recurso às algas (sargaço), só possivel no litoral. As plantas precisam de três nutrientes em grandes quantidades: azoto, fósforo e potássio. 78% da atmosfera é composta por azoto, mas só há pouco mais de um século, com o processo Haber-Bosch, foi possível captá-lo, produzir adubo de forma industrial e fazer agricultura em larga escala sem precisar dos animais para a fertilização.

Essa fertilização ocorre naturalmente e sem incómodos de maior quando os animais estão na pastagem, mas quando estão estabulados ou não tem acesso a todas as parcelas, como acontece em quase todas as vacarias do continente, a solução é transportar a comida (milho e erva) para a vacaria e levar o estrume ou chorume para o campo. 

O problema, bem sabemos, é que cheira mal. Ainda não inventaram uma espécie de sabonete para suplementar a alimentação das vacas. Já experimentei um aditivo, bastante caro, que punha o chorume a cheirar a morango, mas cheira mal na mesma.... E porque cheira mal, além de incomodar, algumas pessoas pensam que é tóxico e faz mal ao ambiente. De vez em quando até há pessoas que chamam a policia.

A ironia é que se um agricultor aplicar adubo químico em excesso ninguém o vai incomodar. No ambito do green Deal e da estratégia “farm to fork”, a União europeia quer reduzir a utilização de adubos químicos em 30%. Partindo do princípio que não se estava a usar adubo em excesso (haverá casos, mas não será a regra), ficaremos ainda mais dependentes da adubação orgânica. Para conseguir comida para os animais e as pessoas precisamos de alimentar as plantas.

Com boa intenção, houve propostas de fazer ETAR (estações de tratamento de águas residuais) para o chorume das vacas. Por regra, não faz sentido. Uma ETAR tem gastos elevados em energia e manutenção. Fará sentido para quem faz pecuária sem terra (por exemplo, a suinicultura). A produção de leite está ligada à terra e 80% do alimento é produzido nos terrenos da empresa agrícola ou de vizinhos. O importante é fazer um correto “balanço de nutrientes”. Contabilizar os efluentes que se produzem, analisar, fazer as contas e ver se chega ou sobra para colocar na terra. Se houver em excesso, procurar terrenos próximos de agricultores que já não tenham animais e que irão agradecer esse “alimento”.

Muito importante é fazer o espalhamento do chorume a baixa pressão, o mais junto ao solo possivel e incorporar imediatamente após o espalhamento, por exemplo com a grade de discos. Reduz-se a libertação do mau cheiro e evitam-se as perdas de azoto por evaporação. Já experimentámos cisternas com sistemas para injetar no solo, mas exigem um esforço de tração enorme de tratores que não temos, além do espaço que ocupam atrás da cisterna. Dificilmente funciona nos nossos terrenos de minifúndio e caminhos estreitos.

Por muitos cuidados que a gente tenha, é impossível evitar algum mau cheiro. Acontece o mesmo com toda a gente quando vai à casa de banho. No caso do chorume nos campos, havendo armazenamento, são apenas dois dias por ano, na sementeira de outono e da primavera. É o preço a pagar pelo alimento que produzimos, pela paisagem verde, pelo oxigénio que se liberta e pelos incêndios que mantemos longe.

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publicado às 21:23

Cuidado com o gang do alcatrão

por Carlos Neves, em 06.10.20

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Já ouviram falar do "gang do alcatrão"? Podem pesquisar no Google e vejam as notícias que aparecem. Não é só com o covid que temos de ter cuidado.
Há muitos anos, apareceu-me à porta da vacaria um jipe com matrícula inglesa, volante do lado direito e dentro dele um velhote gordo, muito vermelho, com colete das obras e a respirar com uma máscara de oxigénio. Dizia que tinha sobrado alcatrão de uma obra e perguntava se precisava, pois era barato. Não precisei. Mais tarde ouvi falar das prisão de vários destes gangs, mas ainda este ano apareceu um vendedor de alcatrão em casa de um familiar meu, quando eu lá estava. "Manda-o embora, é aldrabice". Levei o recado com todo o gosto. Omiti a parte da aldrabice, disse que não precisava e o brasileiro (ou era espanhol?) lá foi à vida dele. Lembrei-me disto hoje ao ver uma publicação de uma jovem de Famalicão cuja empresa foi visitada esta semana. Essa malta aborda empresas ou quintas. Leiam este texto que copiei da página da GNR, tenham cuidado e partilhem esta informação:

"A GNR aconselha: se tiver conhecimento ou o contactarem para alcatroar ou fazer obras de melhoramento na sua habitação ou empresa, desconfie e contacte de imediato as autoridades.

Um grupo do crime organizado internacional, que atua por toda a Europa, sobe o disfarce de uma empresa de aplicação de alcatrão, foi detetado a atuar em Portugal.

As vítimas são, habitualmente, pequenos empresários e proprietários de herdades que dispõem de locais por alcatroar ou com o piso alcatroado em más condições, designadamente estacionamentos ou acessos a casas ou empresas.

Os burlões aproveitam, na maior parte das vezes, a ausência dos proprietários, “invadem” habitações ou empresas, e, sem qualquer autorização, iniciam um trabalho de alcatroamento das entradas ou dos acessos às casas ou edifícios empresariais, disponibilizando serviços de pavimentação, com recurso a maquinaria, a custos reduzidos, com alcatrão excedente de obras anteriores, dispondo-se a cobrar apenas o valor da mão-de-obra.

No final da “obra” realizada, pedem quantias avultadas pelo serviço, exigindo o pagamento em dinheiro, na maioria das vezes ameaçando e intimidando as pessoas para pagarem a quantia e da forma exigida."

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publicado às 21:37

Novas fronteiras para um novo normal

por Carlos Neves, em 02.10.20

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(artigo escrito para a revista cultivar do Gpp do Ministério da agricultura, Agosto 2020)

A pandemia ainda não acabou, mas arrisco desde já uma previsão, tanto para a pandemia como para a agricultura pós-COVID: não vai ficar tudo bem, como se pintou nos cartazes à janela, nem vai correr tudo mal, como se temeu. Depois de a pandemia passar, havendo vacina como se espera, gradualmente vamos voltar a muito do bom e do mau que tínhamos antes da COVID-19. Vai ficar tudo “mais ou menos”, mais ou menos como correu a adesão à União Europeia, quando Portugal, o país com as fronteiras mais antigas da Europa abriu essas fronteiras ao mercado único europeu, ainda antes da moeda única e da livre circulação de pessoas. 

Eu sei que é costume dizer-se que a adesão à Europa foi uma desgraça para a agricultura nacional, mas confesso que estava à espera de pior. Eu tinha 12 anos quando Portugal entrou na então Comunidade Económica Europeia (CEE), já me interessava por estes assuntos, ainda acreditava em tudo o que me diziam e o que diziam é que ia ser uma desgraça, que a agricultura nacional não tinha hipótese de competir no mercado europeu, que ia acabar. Há quem diga que acabou, que as vinhas foram arrancadas, que os campos foram abandonados e tudo isso é verdade, mas também é mentira. Foram arrancadas vinhas, mas foram plantadas outras, com outra qualidade; foram pagos apoios para deixar alguns campos em pousio, mas outros continuaram a ser cultivados, com mais precisão, tecnologia, produtividade e qualidade. Muitos deixaram a agricultura, mas não deixamos de ter produção agrícola. Passámos de 100 .000 para os atuais 4 200 produtores de leite, subimos a produção até ao limite da quota leiteira e estabilizáamos após o seu fim em 2015. Tivemos apoios à instalação e ao investimento. É verdade que alguns projetos faliram, mas creio que ainda assim a taxa de sucesso de novos negócios na agricultura é superior a outros setores económicos.

 

Global ou local?

É uma utopia pensar que podemos voltar à agricultura de subsistência e autoconsumo recorrendo às ferramentas produzidaos pelo ferreiro da aldeia, mas também vejo como negativo um regresso à globalização desregulada do passado recente. A pandemia mostrou-nos que precisamos de uma horta à porta (pode ser de um amigo) para ter “soberania alimentar” e uma “reserva estratégica de alimentos”, mas convém pagar, para o amigo ter como viver. E as vitórias eleitorais de nacionalistas por todo o mundo, nos anos mais recentes, mostraram que não estava a correr tudo bem com a globalização.

A globalização cresceu exponencialmente nos últimos anos, como um vírus, mas não é recente. Os tratores que usamos quase há um século são todos importados. Usamos sementes, genética animal e todo um conjunto de tecnologias também importadas. A mais antiga aliança diplomática do mundo, entre Portugal e Inglaterra, permitiu a exportação de vinho, cortiça, sal e azeite. Atualmente, apesar de 80% da alimentação das nossas vacas ser produzida na própria empresa agrícola, os restantes 20% de ração, subprodutos de cereais e oleaginosas são importados – já há muitos anos que o Professor Arnaldo Dias da Silva nos ensinou que as nossas vacas também pastam na América.

A globalização, que é contestada nas redes sociais “made in USA” com telemóveis “made in China” e baterias de lítio de qualquer outro local do mundo, também teve aspetos positivos. Há ganhos económicos incontestáveis quando podemos produzir cada coisa no local com melhores condições de eficiência. O aumento do nível de vida da população, tanto nas sociedades ocidentais como nas economias emergentes deveu-se a esta abertura de fronteiras. Milhões de pessoas trocaram a pobreza por uma vida de classe média.

Por outro lado, levada ao extremo, a globalização desenfreada também teve consequências negativas. Percebo o interesse da Europa em aceitar a importação de produtos agrícolas com o objetivo de exportar tecnologia, mas isto obriga os agricultores europeus a competirem com produtos obtidos com regras sanitárias e sociais (utilização de mão de obra) menos exigentes do que a Europa exige dentro de fronteiras. E dentro das fronteiras europeias, no setor que melhor conheço, a produção de leite, sofremos durante anos com o dumping de leite produzido no centro e norte da Europa, despejado numa Península Ibérica que, sendo deficitária, supostamente deveria ter um ambiente favorável para a produção.  Despacha-se para longe as sobras a qualquer preço para não prejudicar o mercado de origem. E isso acontece também com os excedentes europeus de leite em pó que são enviados para África, fazendo concorrência desleal aos produtores locais.

No auge das importações altas, preços baixos ao produtor e redução das quantidades a produzir, quando confrontámos os hipermercados com as nossas dificuldades e pedimos explicações sobre a suas importações, recebemos como justificação que era do interesse do consumidor que o supermercado fosse buscar o produto ao local do mundo onde fosse mais barato.

Entretanto, os hipermercados mudaram de estratégia e agora exibem com orgulho o símbolo nacional nas suas embalagens. Porquê? Bem, basicamente, porque não querem manifestações com tratores à porta. É mau para o negócio, afasta os clientes. Depois, porque querem garantia de fornecimento regular dos produtos. Mais perto é mais seguro. E também porque o “local” entrou na moda devido às preocupações ambientais. Mais perto, menos pegada ecológica com transporte e conservação. E ainda, de forma paulatina, os hipermercados vão aprendendo que a política de terra queimada não é boa para o negócio. Quem vende precisa que os consumidores tenham dinheiro. Para terem dinheiro é preciso que o meio rural esteja económica e socialmente vivo, que os consumidores tenham emprego na agricultura, na indústria e nos serviços locais.

 

Outras lições do mercado em tempos de pandemia

Descontando a corrida inicial ao papel higiénico, só explicável pelo pânico e tendência a seguir o exemplo de outros países cuja pandemia precedeu a nossa, a atitude dos consumidores de procurarem alimentos básicos e com longa capacidade de duração foi perfeitamente racional e compreensível. Perante a informação disponível e na perspetiva de confinamento por tempo indeterminado, fazia todo o sentido armazenar mantimentos. E, tal como se descobriu que os profissionais mais humildes (agricultores, motoristas, operadores fabris, repositores, caixas de hipermercado, homens do lixo, serviços de limpeza, segurança, saúde, etc., etc.) eram os trabalhadores essenciais, enquanto se podia prescindir das “estrelas” da vida social, aconteceu também no mercado que os produtos essenciais habitualmente desvalorizados tiveram uma procura enorme (enlatados, leite UHT…), enquanto os produtos de valor acrescentado como queijos e flores perderam valor e mercado.

Contudo, gradualmente, a situação evoluiu à medida que a sociedade desconfinou. E sendo certo que falta muito para voltar ao nível de 2019 (éramos ricos e felizes mas não sabíamos), o novo mercado normal de 2020 mostra tendências como a procura de produtos de valor acrescentado (por exemplo, um vinho ou licor especial) para consumir em casa, como uma espécie de compensação pelos velhos prazeres de ir ao cinema ou a um restaurante, de que muitos têem de abdicar agora, para se protegerem a si ou aos próximos que pertencem aos grupos de risco. E, no mercado, cada vez se torna mais evidente que, perante mudanças cada vez mais imprevistas e mais rápidas, não sobrevivem os mais fortes ou maiores, mas sim aqueles que mais rapidamente se adaptam à mudança.

Ainda antes da pandemia, já se tinha registado um fenómeno curioso nos setores do calçado e das confeções: inicialmente, quando a globalização “explodiu”, há alguns anos, as grandes marcas abandonaram a produção na Europa e deslocalizaram-se para os locais do mundo com a mão de obra mais barata – ÍIndia, China, Paquistão, mas depois progressivamente voltaram a fabricar em Portugal. Porquê? Qualidade e proximidade. Proximidade significa rapidez de resposta e menor necessidade de stocks. É incrivelmente mais rápido mandar um camião de sapatos de Lousada para Paris do que pedir um contentor por via marítima do Paquistão. Seremos capazes de aproveitar a proximidade ao consumidor como vantagem da nossa agricultura ou irá essa proximidade significar conflitos por causa do cheiro do estrume ou dos receios dos tratamentos fitossanitários no olival superintensivo?

 

A PAC é vítima do seu sucesso

Nesta crise não faltou comida porque a Europa tem uma Política Agrícola Comum. Mas notou-se que não tem uma Políitica de Saúde Comum. Foi cada um por si. Não havia ventiladores, nem máscaras, nem capacidade inicial para os fabricar. Fazer da China a fábrica do mundo fica-nos mais barato, mas tem custos. Isto deve servir de exemplo para a forma como a Europa olha o setor agrícola. A agricultura tem de continuar a ser estratégica.

Graças à PAC, a nossa Europa tem uma população de barriga cheia, que não sabe o que é fome desde a Segunda Guerra Mundial, que está estruturalmente aborrecida pela ausência de dificuldades e, esta, envelhecida, está também mais sujeita a receios, mitos e todos os medos relacionados com a segurança alimentar. Esse medo é explorado pelos atores que “lutam pelo espaço no estômago”, sofisticados vendedores dea banha da cobra que, nas redes sociais e nos programas da TV, pretendem vender novos produtos para substituir os antigos (bebidas vegetais ou suplementos de cálcio como alternativas ao “velho” leite, muito mais barato, carne artificial em lugar da carne natural) e todo um rol de suplementos e novidades. 

Essa população envelhecida, solitária porque órfã de filhos, procura na ligação aos animais de estimação o carinho e a estima que não encontra na relação com outros seres humanos. Isto reforça o crescimento dos movimentos animalistas e dos partidos a eles associados, que pretendem estabelecer uma sociedade vegetariana, sem produção animal. Na prática, a esmagadora maioria dos consumidores não lhes dá ouvidos e continua a comer carne e peixe, mas pacientemente os ativistas vão construindo a sua teia, pressionando o poder político de forma persistente, trocando uns votos por uma medida aqui, uma direção geral ali e paulatinamente uma minoria barulhenta vai impondo a sua visão à maioria silenciosa. Houve umas tréguas durante a pandemia, na hora de procurar mantimentos para a família esqueceu-se tudo isto, mas agora vamos voltando progressivamente ao “velho normal” dos ataques à produção animal, com os argumentos do costume apresentados de forma sequencial (ambiente/clima, saúde, bem-estar animal / questões éticas), esquecendo que a domesticação de animais para produção de carne, leite e ovos é tão antiga como a agricultura e faz parte de um ciclo que deve ser afinado e calibrado, mas não interrompido por utopias irrealistas.

Há ainda um novo fenómeno associado a este: a parte “rural” do orçamento comunitário é cada vez mais disputada por organizações que fazem da proteção do ambiente e dos animais o seu modo de vida. Acusam os agricultores de explorarem os animais por questões económicas, procuram maus exemplos de maus-tratos que divulgam de forma sucessiva para denegrir todo o setor, recolhem animais abandonados para “santuários sem fins lucrativos”, mas apresentam sempre um NIB para doações e apostam na sua capacidade de pressão políitica para irem buscar uma fatia cada vez maior de um orçamento comunitário que é cada vez menos agrícola.

 

Pensando o futuro

Sou favorável à manutenção do mercado único europeu para aproveitar as capacidades produtivas de cada país. Não faz sentido repor fronteiras internas aos produtos alimentares na Europa quando temos uma Política Agrícola Comum com ajudas e regras comuns. Mas sou também favorável à rotulagem da origem dos produtos, bem legível para o consumidor que, de forma livre, queira consumir local. E à opção preferencial dase cantinas públicas pelos produtos locais e nacionais. 

Os agricultores sempre sonharam ter sol na eira e chuva no nabal. Também os consumidores querem comida boa, barata, ecológica. Querem ter uma vida moderna com todos os confortos da tecnologia, mas querem um meio rural preservado como museu para os seus retiros de fim de semana. Olham com desconfiança para a evolução tecnológica da agricultura, que não acompanharam e que os agricultores e técnicos não são capazes de explicar e justificar. Explicar que é graças a toda a tecnologia, investigação e intensificação, que conseguem sobreviver no meio rural que os pais ou avós dos urbanos deixaram por causa da pobreza. E justificar que é graças a essa produção intensiva, convencional (duas palavras malditas!) que conseguem produzir barato, de modo a que o cidadão possa gastar a maior parte do seu rendimento no seu conforto e bem-estar pessoal.

É indiscutível que a agricultura tem de ser sustentável para perdurar, respeitando o ditado que nos ensina que não herdamos a terra dos nossos pais, recebemo-la emprestada dos nossos filhos. Tem de ser ecologicamente sustentável, mas tem de ser também economicamente sustentável. Os custos suplementares necessários para um maior cuidado com o ambiente não podem ser apenas assumidos pelos agricultores, tem de ser partilhados na cadeia com indústria, distribuição e consumidores. 

Isto não se resolve diretamente por decreto, mas tem de haver um esforço político para colocar regras no jogo protegendo o elo mais fraco da cadeia e reforçando a sua posição negocial.

A agricultura ambientalmente sustentável não se consegue andando para trás, mas olhando para a frente. Terá de haver aqui uma aposta na investigação para uma agricultura de precisão, eficiente na utilização de recursos, baseada na melhor evidência científica, na formação dos agricultores e na informação dos consumidores através de uma comunicação permanente e proativa.

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publicado às 16:04


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